Entrevistas

Tony Allen: o amor que há no afrobeat

Tony Allen regressou a Sines para exibir o seu afrobeat zen pouco antes dos festejos habituais de último dia de FMM. Muito do repertório que interpretou encontra-se presente no álbum “Secret Agent”. As Crónicas da Terra falaram com o baterista nigeriano e parisiense de 72 anos há três anos atrás em Sevilha, pouco depois de a editora World Circuit ter editado “Secret Agent”. 

“Secret Agent” é o seu mais recente álbum editado pela World Circuit (casa de ilustres músicos africanos como Ali Farka Touré ou Toumani Diabaté) que marca um regresso a um afrobeat mais tradicional, menos experimentalista, menos electrónico, menos roqueiro. Apanhámos um dos melhores bateristas do mundo, no final do mês de Maio, no festival Territórios de Sevilha onde o músico nigeriano apresentou um espectáculo que foi uma súmula da sua carreira. “Secret Agent” só começou a ser apresentado ao vivo esta semana, com uma formação ligeiramente diferente daquela que tocou na Andaluzia. Nestes novos espectáculos, além de Tony Allen cantar escondido atrás da sua bateria, há também a fresca voz de uma nova cantora nigeriana, Ayo. Não, é aquela cantora soul radicada na Alemanha que estão a pensar. «Não é a Ayo que vocês conhecem na Europa. Ela não consegue cantar assim. Ayo é um nome comum na Nigéria», refere Tony Allen

Tony Allen 2009_2– “Secret Agent” é um regresso às raízes, depois de experiências com música electrónica como “Home Cooking” que editou pela Comet. Será que o facto da sua edtora actual ser a World Circuit (mais orientada para a música de raiz), o influenciou na concepção deste disco?

É uma coincidência. “Home Cooking” tinha de facto um toque mais electrónico. Antes disso, também “Black Voices” tinha electrónica. Depois desses discos, gravei o “Lagos No Shaking” em Lagos [Nigéria] que tem uma abordagem mais rock, mas também é mais enraizado, porque todos os músicos que participaram na gravação deste disco vivem na Nigéria. Sou o único que vive na Europa. Desta vez, quis manter as raízes mas optei por gravar com os músicos da minha banda que não participaram em “Lagos No Shaking” e que também vivem na Europa.

– Todos os músicos com quem toca actualmente vivem em Paris?

Exepto as cantoras que vivem na Nigéria. Todas as cantoras convidadas neste disco são de Lagos.

– Pensa que o facto de um músico viver em Paris pode influenciar a forma de compor de um músico africano que se vê mais exposto a outras áreas musicais ocidentais?

Depende de que quem é quem. Do que queres fazer. Fui a Lagos para gravar “Lagos no Shaking”, de propósito, porque tinha gravado mais discos na Europa. E porque é que “Lagos No Shaking” soa a música de raiz? Porque me encontrei com músicos de lá. Claro que poderia fazer um disco como este em França. Mas quis gravar com músicos africanos. A mentalidade de um músico muda quando este vive na Europa. Isso afecta a sua maneira de tocar. Por isso, não o poderia fazer com os meus músicos «europeus». Tive de ir mesmo à raiz.

– Que característica vê num músico que nunca saiu de Lagos, que já não vê num músico africano que vive na Europa?

É o solo que pisas que te influência a tua maneira de ser, o teu estilo de vida. Se estiveres na Europa não podes ser um «homem da selva». Quando estás em África o teu comportamento deve ser de um africano, não de um europeu que está em África. Ninguém aceita essa forma de estar. O solo que pisas muda a tua mentalidade. Não consigo comparar ambos, mas a abordagem à música não é a mesma.

– O que é que prefere? Fazer um disco como “Lagos No Shaking”, ou gravar “Secret Agent” com os seus músicos que também vivem na Europa?

Este disco é metade-metade. Desta vez tive de fundir o rock e o que não é rock.

– É um dos fundadores do afrobeat, mas costuma dizer que está sempre a aprender com outros músicos. O que é que tem aprendido com os seus músicos que vêm de proveniências diversas como Martinica ou Camarões e com músicos da pop com quem tem colaborado noutros projectos?

Os meus músicos têm de ser bons. Escrevo a minha música e digo-lhes o que têm de fazer. Têm a forma, mas se eles são bons, eles podem pôr o seu toque pessoal. Não admito isso se não forem bons músicos. Há liberdade para isso quando são bons e suficientemente espertos.

– Isso é sua a forma de trabalhar com a sua própria banda. E como é que fez no projecto The Good, The Bad & The Queen?

Criamos em conjunto. Todos trazem ideias. Ninguém me diz o que tenho de tocar. É diferente, não é a minha banda. A minha banda é a minha banda. The Good, Bad & The Queen não é a banda de alguém, é um projecto, uma experiência. É diferente.

– Ainda continuam juntos?

Continuo a trabalhar com o Damon Albarn, mas não como The Good, Bad & The Queen. Mas ambos andamos muito ocupados actualmente. Ele com os Gorillaz. Eu, que acabei de editar este disco, vou agora começar uma digressão.

– Como vê o interesse de músicos brancos como o Damon Albarn, o Justin Adams, ou mesmo uma banda norte-americana como os Toubab Krewe em irem a África para aprenderem a tocar instrumentos como cora ou n’goni?

África é muito grande. É a origem de tudo o que é indígena. Por exemplo, em África construiu-se a cora que deu origem à harpa ocidental. O som de ambos os instrumentos é diferente. Mas o tocador de harpa gostaria de extrair na harpa o som da cora. Um é mais polido o outro é mais cru. Por vezes, quem toca harpa quer ter um som mais cru.

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– O seu instrumento é uma bateria ocidental. O que é que encontrou neste instrumento que não precise de percussão africana para tocar afrobeat?

É o instrumento que quero tocar e tenho de o fazer à minha maneira. Foi construído na América, mas não toca por si própria, não tem de soar a americano. Toco da forma que quero e o que quero ouvir. A bateria não toca por si própria, alguém tem de a controlar e de a pôr a falar.

Nunca tentou construir um kit de bateria híbrido com elementos de percussão africana?

Não preciso. Não sou um tecnicista. Toco música e faço aquilo que é necessário. Vejo bateristas com um grande aparato. Não preciso de ter não sei quantos pratos…

– «Play it simple, Tony»

Tocar simples e de forma clara.

– O Afrobeat que foi criado há uns 30 e tal anos atrás é uma música muito sexy. Vejo que, actualmente tanto o Femi, como o Seun Kuti, de sangue muito quente, são ambos são o exemplo disso. O seu afrobeat é muito mais espiritual, relaxado. Parece-me uma espécie de afrobeat zen. É tocado por espíritos yoruba?

Tenho o meu destino que me leva a fazer aquilo que faço. Quanto aos filhos do Fela, eles têm o sangue dele, é natural que eles sigam o seu legado. Eu não sou filho dele. Posso seguir o meu próprio caminho.

– E a idade também conta, não é? Tem 69 anos.

Sim, mas sempre fui assim. Nunca toquei bateria com agressividade. Poderão haver alturas em que uma música pede agressividade e que eu o faço, mas isso está na bateria. A agressividade não está no meu interior.

– A sua ideia de afrobeat é ser tocado de forma simples. Mas o afrobeat quase nunca foi tocado de forma simples. Muitas das orquestras que vemos têm duas dezenas de músicos, inúmeras vozes secundárias, músicos que estão em palco a bater o tempo todo, da mesma forma, numa pequena percussão. Porque é que estas orquestras têm tantos músicos?

É o que eu estava a falar. Todos quiseram seguir a formação de Fela. Há de facto muitos músicos que não fazem mais do que abanar maracas, ou algo. Mas isso é bom para África. Significa que há mais gente a ganhar dinheiro. Como vivo na Europa não posso ter uma formação deste tipo porque o promotor de espectáculos não quer. Se a banda vem de África tudo bem, ele aceita. Mas não aceita uma banda que vive na Europa com toda essa gente porque iria encarecer demasiado o cachet de um espectáculo e assim não o venderíamos. Em 1985, quando vim para França e formei a minha banda, éramos quinze músicos.

– Então foi tendo de cortar «gorduras».

Não foi fácil. O promotor dizia-me que eram demasiados músicos. Mesmo para este disco [“Secret Agent”] ele diz-me que não devem estar mais do que 10 músicos em palco.

– Neste álbum toca uma canção com acordeão. Penso que nunca ouvi tal instrumento em afrobeat.

Isso é o toque Tony Allen. Porque nunca deixei de experimentar coisas novas. Por vezes os jornalistas perguntam-me se eu não estou a ir demasiado longe. É suposto que o afrobeat seja de determinada forma. Muito enraizado. Concordo, mas tenho de continuar a experimentar. Se for bom, é bom, se for mau volto à fórmula inicial.

– Cria novos temas como se estivesse num laboratório…

É muito interessante para mim. Aborreço-me de me repetir. Não é o meu estilo estar sempre a tocar da mesma forma. Quero fazer mudanças rápidas, não para piorar, mas para melhorar a minha música.

– Não vive na Nigéria há 24 anos. Consegue comparar aquio que o Fela via nos anos 70 com aquilo que você vê actualmente de fora para escrever canções de intervenção em “Secret Agent” como “Elewon Po”?

Nunca foquei a minha atenção num aspecto em particular. Sempre falei sobre eventos. Faço sobre o que sinto em determinado momento. Dos problemas entre o sistema e as pessoas, daquilo que vou observando, daquilo porque vou passando. Mas não sou político. Porque é que compus a canção? Não a fiz por o afrobeat ser uma música militante, nem sou um cantor militante. Afrobeat é uma música. Qualquer mensagem fica bem no afrobeat. Posso cantar uma canção de amor no afrobeat. A mensagem é a mensagem. Fela Kuti cantava na Nigéria pela mudança. Ninguém consegue mudar nada porque o governo é muito poderoso.

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– Como vê, por exemplo, certos acontecimentos na Nigéria como a morte do activista Ken Saro Wiwa e a cobertura que o governo dessa altura deu à indústria de exploração petrolífera que poluiu o Rio Niger e que fez com que famílias inteiras tivessem de abandonar as suas casas e modo como viviam o seu dia-a-dia?

Isso é o continente africano. Todos os grandes líderes querem ter poder eterno e viver como reis. Todas as riquezas estão demasiado concentradas num só homem. Não sabem o que é uma administração que partilhe recursos por todos. África nunca teve este tipo de ideologia.

– Não pode esperar grandes mudanças porque isso lhes está no sangue?

Está-lhes no sangue. Chorámos durante muitos anos.

– É por isso que vive em França?

Sim. Não quero estar no meio dessa merda. Senti estar a lamentar-me o tempo todo e senti que nada iria mudar. Tive de sair dali. É a loucura de África. Por vezes criticávamos os brancos, que tinham trazido a merda para África. Porque é que eles não conseguem encontrar uma solução? Muitos dos jovens políticos vêm para aqui [Ocidente] estudar e vêem como este sistema é bom. Há pobres em todo o lado, mas quando falamos de pobreza na Europa vemos que os governos os ajudam. Mesmo que não trabalhem, os governos dão-lhes algo, ainda que não seja muito, para sobreviverem. Isto não se vê em África.

– A história parece repetir-se em todo o lado. Que dizer por exemplo do Thomas Mapfumo que criou a música chimurenga de resistência ao regime branco de Ian Smith? Ele que era apoiante de Mugabe antes deste chegar ao poder. O que é que um músico como o Mapfumo pode fazer quando Mugabe está no poder e o manda prender por ter escrito canções como “Corruption”? Exilar-se nos Estados Unidos e esquecer-se de tudo…

Sim, O Thomas Mapfumo anteriormente era apoiante de Mugabe. O Mugabe não é exemplo para ninguém. Como chefe de governo é um grande idiota. É este o tipo de erros que temos em demasia em África. Quando alguém é presidente julga-se rei. Nunca vi um presidente na América eternizar-se no poder. Só podem lá estar oito anos. O sistema de dois mandatos de quatro anos também vigora agora na Nigéria, desde 1998.

– Mas pensa que as coisas estão melhores agora na Nigéria com esta rotatividade democrática.

Está um pouco melhor. Talvez ainda esteja no início. Mas bem melhor do que na altura em que os militares governavam a Nigéria num estilo semelhante ao de Mugabe.

– Quem é o “Secret Agent”?

É o amigo em que mais confias, mas é aquele que te causa mais problemas. É aquele que te conhece, que conhece algo sobre ti e que te pode comprometer. Todos nós temos os nossos «agentes secretos» que são simpáticos, que se riem, mas que a qualquer momento nos podem espetar uma faca nas costas.

– Isso não será uma metáfora global para alguém que é vice-presidente e que procura o momento certo para se tornar presidente?

É essa a filosofia. É preciso termos cuidado, andarmos de olhos bem abertos e não confiarmos em toda a gente. O nosso amigo que conhece os nossos segredos pode usá-los contra nós. Sugiro que tenham cuidado.

– Não se inspirou em ninguém em particular, mas sim num comportamento inerente ao ser humano, certo?

Sim. Isto não me acontece apenas a mim. Acontece a toda a gente.

– E em qualquer período de tempo. Desde a história da humanidade. Veja-se Roma antiga…

Sim. sim.

– Seb Martel, responsável por polir o som de guitarras no álbum “Tchamantché” de Rokia Traoré, participou nas gravações de “Secret Agent”. Que papel desempenhou ele neste disco?

Seb é meu amigo. Fez todo o meu trabalho final e deu-lhe um toque pessoal. Dizia-lhe o que deveria tocar mas que imprimisse o seu som distinto. Há imensos músicos em França com quem toquei, mas agora tenho os meus «tipos».

Entrevista publicada originalmente em 28 de Agosto de 2009

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