Reportagens

Festival MED 2009: É tão grande o Mediterrâneo

La Notte Della Taranta, Rokia Traoré e Lura foram as propostas do Festival Med de Loulé que mais se destacaram nesta edição de 2009. As Crónicas da Terra atribuem-lhes o ouro, a prata e o bronze, respectivamente.

La notte della Taranta

Ouro: La Notte Della Taranta

Numa edição em que o Med se desviou (talvez demasiadamente) do conceito de música mediterrânica, eis uma proposta que valeu por cinco ou seis bandas em palco. O projecto italiano La Notte de La Taranta, que inclui o baterista norte-americano e ex-Police Stewart Copeland, é uma espécie de “Buena Vista Social Club” da dança pizzica (da família da tarantella) de Salento. Reúne duas dezenas de músicos que, ao longo de mais de uma década, têm cruzado ritmos tradicionais da região da Grécia Salentina (situada no salto alto da bota italiana) com rock, jazz, música sinfónica, num mítico festival homónimo na província de Lecce. Tudo aquilo que escutámos nesta última noite de Med, já havia sido registado ao vivo em 2003 num ambiente frenético na praça do mosteiro Agostiani, na localidade de Melpignano, por mais de 50 mil pessoas, no disco homónimo La Notte della Taranta (edição CD + DVD Ponderosa, 2004). Apesar de estarmos perante uma «big band» que nos apresenta repertório com uma meia-dúzia de anos de rodagem, o factor surpresa foi enorme. Para além do disco e do DVD terem passado completamente despercebidos entre nós, assistir a um projecto destes em palco, em que vemos Stewart Copeland diluído, muito humildemente, num mar de músicos italianos, é uma experiência sensorial única que nenhuma projecção em cinema ou vídeo nos oferece.

Num festival em que o vento voltou a provocar problemas de som em alguns espectáculos (sobretudo em Buena Vista Social Club), saúda-se o facto de o técnico (também) italiano ter tido muito boas mãos para controlar o transe colectivo destes músicos (que estavam certamente sob o efeito da mordidela da tarântula), proporcionando (também) o melhor som dos espectáculos que vi no Med 2009: alto, poderoso, possante, transmitia na perfeição a dimensão da festa que se vivia em cima do palco dominada ritmicamente por duas baterias, congas, bidons metálicos (na celebração final) e uma meia-dúzia de percussões usadas nas tarantelas, acompanhadas por um duo feminino que dançava e cantava efusivamente, como se estivesse num ritual curativo para expelir o veneno do grande e peludo aracnídeo. E se a este poderio percussivo juntarmos quatro teclados prog-rock, duas marimbas (que se ouviam perfeitamente e que, por vezes nos remetiam para as sonoridades exóticas dos «steel drums» das Caraíbas), um saxofone jazzy, um violino (que nos traz à memória Jean Luc Ponty), uma guitarra eléctrica (que tanto imprimia a rudeza do rock dos anos 70, como vagueava por experimentalismos e paisagens desertas em movimento, estilo «ribot-caposselianos»), um acordeão, um bouzouki e uma belíssima e longa gaita-de-foles siciliana a ligar esta verdadeira epifania à terra? O projecto La Notte della Taranta é, sem dúvida, uma receita tão complexa quanto perfeita, servida com os temperos bem doseados, que transmite todo o poder enérgico e sincrético da tarantela. Depois desta actuação percebemos o porquê do festival homónimo (já referido, que se realiza anualmente no sul de Itália) ter tido cerca de 150 mil assistentes em 2008. Regressem depressa, por favor.

Rokia Traoré

Prata: Rokia Traoré

Não fora o facto de ter visto quatro vezes Rokia Traoré em menos de um ano (diluindo o factor surpresa que arrebatou tudo e todos no FMM de Sines de 2008) e ofereceria, sem espinhas, o ouro a esta magnífica maliana. Na assistência, duas senhoras de meia-idade questionavam-se sobre o facto de Rokia não vir vestida à “Africana”. Rokia consegue conciliar o charme, a sofisticação ocidental com a pura raça e beleza negra. Imprime toda a expressividade de uma actriz exímia em mímica quando revisita Billie Holiday no clássico “The Men I Love”. Transfigura canções intimistas de “Tchamantché” com a força e fúria do funk-rock da fabulosa banda que a acompanha e cujo baixista, Christophe “Disco” Minck, lhe dá o balanço disco-sound perfeito para a «gazela» maliana recordar os êxitos ocidentais que cantava à porta de sua casa em Bamako, quando era criança. É esta a Rokia com um pé em França e outro no Mali, com a energia do rock e do funk ocidental, dos ritmos pentatónicos e do virtuosismo do tocador da guitarra ancestral africana (n’goni) que alerta para a imigração em massa dos africanos que põe em perigo o desenvolvimento do continente «berço da humanidade» (antes de atacar a canção “Tounka”), que reivindica os direitos das mulheres africanas a serem tratadas com dignidade, como damas. Para o efeito, o habitual «medley» final convoca os espíritos de Fela Kuti (“Lady”), de Miriam Makeba (“Pata Pata”) e não esquece acordes de “Don’t Stop ‘Til You Get Enough” e de “Billy Jean” de Michael Jackson. Tudo isto com uma intensidade inesgotável. Como é possível uma cantora de aspecto físico gracioso, frágil e muito feminino possuir toda esta energia de um tsunami?

Lura

Bronze: Lura

Lura é actualmente, muito provavelmente, a voz cabo-verdiana mais interessante da sua geração. A lisboeta de sangue cabo-verdiano possui a graciosidade e a raça de Rokia. O sangue quente de uma pura felina quando se senta para tocar batuque, ou quando ataca o funaná “Mundo ê Nos” e o inevitável “Vazulina”. Ou quando convoca toda a plateia a deixar-se embalar pelo clássico “Na Ri Na”. Mas também sabe ser uma “lady” africana (que merece ser respeitada) quando mistura morna com fado (“Eclipse”), ou quando reforça toda a beleza harmónica de “Libramor”, de Mário Lúcio. E é neste toque subtil de seda, de serenidade, de maturidade, mas também de carácter exploratório de uma miríade de ritmos (do r’n’b americano de “Quebród Nem Djosa” ao bikutsi de “Maria” – não é a toa que o baixista Russo é um admirador nato da linhagem de baixistas camaronianos) que a música de Lura tem amadurecido e ganho projecção internacional. Tal como Rokia, Lura está rodeada de grandes músicos. Toy Vieira é um refinado arranjador que toca piano com a extrema elegância e sensibilidade do sul-africano Abdulah Ibrahim. E se ao piano nos oferece o céu, que dizer do belíssimo momento em que em que pega no cavaquinho e se junta aos restantes músicos em espírito de Tocatina, para interpretarem a coladeira “Mascadjôn”? É ele que estende a passadeira vermelha para que exímios instrumentistas, como o violinista francês Guillaume Singer (oiçam a sua destreza em “So Um Cartinha”), ou como o guitarrista Vaiss (oiçam os seus rendilhados em “Ponciana”), também possam mostrar todo o seu virtuosismo. E que músicos. Foi pena que Lura desta vez não tivesse cantado “Nem às paredes confesso”, como o fez no Tivoli. Lura tem fado no sangue e sabe muito bem ouvi-la no seu português perfeito. Mas é perfeitamente compreensível que o alinhamento de um festival não seja o mesmo de um concerto de apresentação de um novo disco em auditório, cujo tempo de duração é substancialmente superior. Pequeno pormenor que, em nada, diminuiu toda a beleza deste espectáculo.

[continua]

(c) fotos de Rokia Traoré e Lura – CM Loulé / Mira


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24 Comments

  1. Luis
    Olá, acredito que o teu ranking e cometários façam justiça aos artistas do MED, eu tenho pena mesmo de não ter visto a LA NOTTE…e Lura, no entanto adorei o pouco que vi. Para o ano não sei se poderei estar no MED penso que ainda estarei pelos meus “pagos”. Tal vez tenhamos oportunidade de nos encontrarmos em Sines, bjs

    1. Olá Gaucha,

      Vou estar os dias todos em Sines. Agora tenho uma má notícia para te dar. O Ramiro Musotto está doente e cancelou o espectáculo do FMM.

      Outra coisa, conheces a cantora argentina residente em Nova Iorque Sofía Rei Koutsovitis?

      bjs

      1. Oi Luis
        Tenho imensa pena que ele não venha e mais ainda que ele esteja doente. Não conheço a Sofía Rei Koutsovitis, vou ver se encontro algo dela no youtube para ouvir e logo digo-te algo. Também não entendo que passa com os avatares, por vezes tenho um e outros dias um outro. Não é importante, só que não dá para perceber. Este do mate gosto imenso, mas o das flores azuis é o meu preferido, pois são flores do campo, como eu 🙂

        Bjs

          1. Muito bem a menina. Uma mistura interessante de Mariana Baraj, Susana Baca e Marta Gomez. Mais uma que ou é da água dos Andes, ou do vento das Pampas ou da Patagónia.
            A explorar de certeza.
            Gostei principalmente das versões de Cardo y Ceniza (mas claro Chabuca Granda é a maior!!) e de Ojála de Silvio (outra enorme canção). Só por estas duas já merece a minha reverencia

      2. Péssima notícia… Tenho gostado muito de ouvir o “Civilizacao & Barbarye” e era um dos concertos que mais curiosidade tinha de ver 😐

        Bom… podem colocar Cacique’97? eheh

        Olha Batida no Mestiço foi muitissimo bom. Qualquer dia hão-de leva-los ao FMM para terminar uma noite no palco lá em baixo.

  2. Tenho um comentário de 1 pagina e meia. Que faço?
    Já agora muito boas as tuas criticas. O continua, significa que vais dizer mal no próximo?? Espero que sim

    Já agora foste, espreitar os Tinarwien ao ao Festival Arrábida? Já ouviste o novo deles? estou cheia de curiosidade
    beijinhos

  3. Bom dia Amália,

    Podes simplesmente fazer copy paste para a zona dos comentários. Não há limitações de caracteres como no twitter.

    De qualquer forma vou ter abrir uma conta de autora nas crónicas e o texto pode ser publicado como uma entrada normal na categoria de reportagem. Queres?

    Vi os Tinariwen e o Tcheka e fiquei muito encantado com o espaço. Espero publicar texto o mais breve possível.

    Mas antes ainda há muita coisa para falar bem e mal (de raspão) do Med: Justin Adams, Camané, Siba, Kimmo, Dj Click, Pitingo, BUena vista, Donna Maria, Mistura Pura, Oco, Duonde, Filipa Pais, Phillarmonic Weed, Susana. Travassos, Mutenrohi.

    bjs

    1. Olá Luis
      Eu como autora????? Nãããããooooo! Autor és tu, eu só mando bocas. 🙂
      Faço copy paste para aqui e chega
      O limite é da paciencia do pessoal (tu inclusivé) para ler a minha pseudo-critica.
      Pois, ouvi o Francisco Mendes falar do espaço na antena 3 e ele disse que tinha uma vista maravilhosa. A ver se para o ano dá para dar lá um salto.
      Tcheka mais uma vez em Portugal e eu não consegui ainda vê-lo ao vivo, um dos meus artistas favoritos!!
      Fico à espera.
      Bjs

    1. Luis,
      Tenho o CD da Sofia Koutsovitis há 1 semana, mas não posso dizer como consegui ;-), e também adorei o tema Coplera, se bem que o video do Youtube não seja da melhor qualidade dá para ter uma ideia, creio que será melhor ir ao Space dela e ouvir algumas musicas que lá estão.
      Gostei de todo o trabalho, não a conhecia e, embora eu não seja como muita gente que aqui anda, que conhece tudo e mais alguma coisa (como tu e a Amália) quando gosto ou quando me falam de algo oiço até à exaustão e pesquiso e leio etc. e esta menina Sofia agradou-me nessa medida…
      Beijokas

  4. Luis
    Foi ver esta “chica” Sofia e é simplesmente fantástica. Na verdade tenho que concordar com a Amália, ultimamente tenho descoberto uma quantidade de compatriotas que cantam e fazem música do melhor, parece que sim que saem debaixo de cada pedra, porque eu gaucha tb não consigo cantar nem no duche 🙁 ?????
    Este outro grupo também achei que vale a pena ouvir (uma voz que nem te digo!!!)
    http://www.myspace.com/lasurca

  5. Oi Luis

    Vou dar-me um respiro, por isso até breve ou até Sines, se bem que como não te conheço, poderás até passar ao meu lado que nem vou dar por isso. 🙂

  6. Caríssimos,

    Tenho andado num stress danado por causa do anterior tema que berrou assim que actualizei o editor word press para 2.8.1.

    Para já volto a este tema. No entanto, gostava de saber a vossa opinião entre este e o outro tema. Reparei que começaram a ser mais participativos derivado do facto de os temas mais comentados aparecerem logo no topo. Este tema não inclui a funcionalidade de resposta a comentários. Daí que os comentários nesta entrada e na outra do med tenham ficado um pouco caóticos.

    Marco, a Batida está hoje no Musicbox. Provavelmente irei à fábrica da pólvora ver a orquestra 7 luas que inclui a nossa celina piedade e o efrén lopez (Lham de foc, aman aman) e, se calhar, ainda passo pelo musicbox.

    Amália, o teu texto é pertinente e reflecte bem a evolução do Med de há cinco anos para cá. Mas também  devemos compreender que os festivais crescem, evoluem. É preciso agora encontrar uma de muitas fórmulas possíveis para que o Med tenha ainda mais qualidade e que dê um pouco de calma a quem quer ver, pelo menos, os artistas nos dois palcos princiais.

    Ah, o Tcheka mantém o seu estado puro de cantar e de tocar guitarra de forma muito instintiva. É, de facto, um músico notável.

    Gaucha. Bom descanso e, certamente, que nos vamos encontrar em Sines.

    Duda, Gaucha, Amália, o circuito dos festivais «world» em 2010 sem a Sofia Koutsovitis será como uma ribeira sem água.

    beijos e abraços

     

  7. Eu decididamente gosto mais do outro! É muito mais funcional. Mas utilizo este se o outro se recusar a trabalhar. E eu a pensar que a culpa era minha porque aconteceu depois de colar o meu comentario.
    Beijinhos e Boas Musicas em Sines para tod@s

      1. Pois, acho que não. Só se for um dia. Ainda não sei ao certo.
        Vais estar a fazer radio onde? Mas é só de tarde não é?
        É o Zenko sim (apelido de uma cantora de tango argentina de nome Julia) e aparecia nessa noite quando se abria a pagina.

        Beijinhos

    1. Olá Marco, não tive oportunidade de ver Batida, mas vi para da Orquestra 7 Luas. O Efren Lopez em alaúde e sanfona é uma verdadeira máquina. Também gostei muito da grega em lira e, claro, da Celina da Piedade. Repertório variado que incluiu a casa portuguesa que teve a sua graça devido ao andamento que o Efren imprimiu com o alaúde.

      abraço e até Sines

  8. Calou-se este fim-de-semana a Voz da Argentina.
    A voz dos pobres, dos oprimidos, pelos direitos dos homens e das mulheres, da luta por uma pátria melhor
    Calou-se a voz de Mercedes Sosa, calou-se apenas, porque nunca se irá perder, não se vai esquecer, nunca irá deixar de ter o significado que sempre teve.
    Uma grande Sra. que eu infelizmente nunca vi ao vivo mas, à qual dediquei muitas horas.
    No dia em que faleceu estivemos a ouvi-la música atrás de música, no dia seguinte vi a noticia no jornal.
    Lágrimas quentes caíram dos olhos lindos de alguém que a adorava muitíssimo e por causa das duas eu fiz aquele blog.
    Que descanse em paz La Negra.

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