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Ollin Kan – culturas que resistem às intempéries [1/3]

Luís Fernandes - Toques do Caramulo
Luís Fernandes - Toques do Caramulo
Luís Fernandes - Toques do Caramulo (c) Luís Vidal

As Crónicas da Terra assistiram aos treze espectáculos da terceira edição do Ollin Kan, que se realizou entre 10 e 12 de Junho em Vila do Conde e conseguiram resistir à chuva e ao frio das nortadas.

O mundo já não é o que era. É caso para questionar se corremos o risco de vermos Lisboa coberta de branco em pleno mês de Agosto. O estado do tempo está cada vez mais imprevisível. Não falta muito para parecermos os ingleses a usar todo este dinamismo meteorológico como habitual desbloqueador de conversa. O meu segundo festival oficial de Primavera / Verão foi bem regado com chuva. Depois da enxurrada que sofri há um mês atrás em Cáceres (em quase vinte anos de WOMAD quase nunca havia chovido durante a primeira semana de Maio nesta cidade da Extremadura espanhola), eis que o mau tempo se instala por todo o país, sobretudo no dia 10 de Junho.

A terceira edição da extensão portuguesa deste festival de origem mexicana das culturas em resistência foi literalmente à prova de chuva. O espaço ao ar livre junto à nau quinhentista, onde seriam montados dois palcos que funcionariam em pingue-pongue, deu lugar ao moderno e arejado Teatro Municipal de Vila do Conde que recebeu os dois primeiros dias de festival. A primeira noite foi longa, as cerca de 600 cadeiras pareciam poucas para tanta gente, mas a boa vontade da assistência, em que muitos assistiam a um dos espectáculos e ofereciam o seu bilhete a quem esperava pacientemente pela sua vez (à conta destas sucessivas trocas, passaram pelo TM cerca de 3000 pessoas por dia).

Quatro espectáculos numa só noite (das 22h às 3h da manhã) em que os concertos não excedem os 50 minutos, em que a maior parte dos projectos são desconhecidos mesmo para os mais atentos a estas músicas, dá-nos uma leve sensação de estarmos a viver um dia de showcases um pouco mais alargados numa feira como a WOMEX (contudo, sem espectáculos em simultâneo). No menor espaço de tempo possível, os músicos tentam impressionar uma plateia ávida de descoberta (ou não fosse a nau quinhetista o ícone desta extensão do Ollin Kan). Uma luta contra a vontade do público em sair da sala desentorpecer as pernas, beber algo, fumar ou falar com os conhecidos.

Luís Fernandes, cantor, acordeonista e, sobretudo, performer dos Toques do Caramulo deve ter consultado o oráculo e, por isso, já devia saber que iria tocar para gente sentada. A mudança de espaços não afectou minimamente o projecto de Águeda que parecia ter este espectáculo planeado ao segundo. Sintonia perfeita entre os músicos que ora param, ora voltam a atacar em diferentes velocidades uma moda, consoante as necessidades performativas do mestre de cerimónias, que sai do palco para andar pelo meio da sala, em sessão de equilibrista em cima de cadeiras, seduz, assusta as senhoras mais distraídas (numa emulação de um número à Fura dels Baus), pára (e manda parar a banda) e faz longa pose quando sente que está sob o foco das objectivas. À parte destes números circenses (que os Babylon Circus também poderiam adoptar caso fossem para o meio do público), nota-se que musicalmente o projecto está muito bem oleado, que o palco é o seu habitat natural. A matriz continua a ser da pura fonte da folk serrana, como a da água do Caramulo, mas a fluência em diversas linguagens musicais (da folk europeia mais purista à mais experimentalista, do jazz e do blues – Peninha sempre muito discreto mas também sempre muito eficaz – a batidas que ecoam a Gotan Project ou Bajofondo – com Larita a saltar mais alto que o Ben Reed) faz de um projecto marcadamente regional, num caso sério da folk universal. Pena que o tempo gasto com o lado lúdico que cativou o público tenha reduzido a set list. O público pediu encore mas a apertada agenda e esforço da organização em cumprir horários impediu nova epifania. 4estrelas.gif

A primeira noite prosseguiu, de forma bastante eclectica, com o percussionista venezuelano Pibo Marquez. Excelente executante de congas, mas o seu jazz latino e a sua salsa são algo datados. Versões como “Oye Como Va” de Tito Puente nada acrescentaram ao original de Tito Puente ou à popularizada versão de Carlos Santana. É pena. 3estrelas.gif

Da Andaluzia, os Rare Folk, olham como os sevilhanos Contradanza para o universo da folk das ilhas britânicas. Exibem um pujante e dançante etnofolkadelic inspirado nos escoceses Shooglenifty e um pulso progressivo que faz esticar o seu repertório instrumental, por vezes, para alem do desejado. Um punhado de bons músicos perde a eficácia da fusão electro-folk, da fluidez do flautista e do acordeonista – porventura os mais esclarecidos elementos da banda – com riffs sujos de guitarra eléctrica desnecessários (sem bem que as malhas wah wah sejam bastante aceitáveis). Para além disso, tiveram uma relação com a plateia algo fria, não tendo sido capazes de criar laços de intimidade com o público. 3estrelas.gif

E se o público, nos dois anteriores espectáculos quase não reagiu com os Che Sudaka explodiu. E estes também explodiram em palco como um homem-bomba islâmico. A banda de imigrantes argentinos e colombianos sem papeis sediada em Barcelona deu a pancada certa na garrafa de ketchup e este espalhou-se por toda a plateia e, sobretudo, pelo palco, onde um dos vocalistas acabou o concerto em trajes menores. Uma actuação mais orientada para o espaço da nau quinhentista, mas que pôs toda a plateia de pé, desde o primeiro minuto, em que foram servidas doses calóricas de cumbias, skazadas a 200 à hora, rock radical basco na veia dos Kortatu e rumbas catalãs tocadas com guitarra acústica que subvertem “Englishman In New York” de Sting para o hino “Sin Papeles” dos imigrantes não documentados a viver na Europa, temperadas com uma dose excessiva de azeite. Um projecto excessivamente colado à mensagem, à energia e à mescla sonora de Manu Chao, mas que cumpriu a sua principal função: por toda a gente divertida e dançar do primeiro ao último minuto. Uma primeira noite que acabou como começou. Em enorme festa. 4estrelas.gif

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