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Ollin Kan – xarém com guacamole e glögg com dom rodrigo para resistir à nortada [3/3]

Celso Duarte
Celso Duarte (c) Lisa Cepeda
Celso Duarte

Ao terceiro dia, o Ollin Kan de Vila do Conde realizou-se finalmente ao ar livre, no largo junto à nau quinhentista. As nuvens ainda ameaçaram durante a tarde, mas à noite, o maior desconforto foi o ar frio e o vento da nortada que ofereceu um cenário mais natural, agreste, à entrada da norueguesa Elisabeth Vatn no segundo palco (mais pequeno e intimista, junto ao museu).

Desde cedo que Elisabeth se viu algo desconfortável em palco, não pelas condições atmosféricas (já que para quem está habituado aos ares de Riddu Riddu isto é uma brincadeira de crianças), mas pelo facto de se ter partido uma palheta interna na sua gaita-de-foles sueca, tornando o instrumento indomável, qual rena selvagem. A gaiteira viu o que podia fazer (ou não fazer) e acabou por ter de adaptar o alinhamento do espectáculo às circunstâncias dos acontecimentos, à sua small pipe com fole mecânico accionado pelo braço direito, semelhante à da britânica Kathryn Tickell, ao harmonium e ao clarinete norueguês (Meråker) de escala arcaica. Carga de trabalhos adicionais que o público pouco reparou, dado elevado nível de competência dos músicos, sobretudo o baixista Gjermund Silset e o percussionista Helge Norbakken (sim, esse fantástico músico de Mari Boine que tem gravado em vários discos de Maria João e Mario Laginha) que aconhegaram Vatn e, apesar de todos os percalços, deram um espectáculo memorável para quem é adepto da folk escandinava. Quem ouve o disco “Piper on The Roof” sente que há aqui uma foz onde desaguam baladas medievais, yoik sami, percussões xamânicas que vêm das entranhas da terra, rock progressivo, jazz e experimentalismos inesperados que retratam a geografia rústica e acidentada dos fiordes. Elisabeth Vatn filia-se naquele lote de artistas como Karl Seglem (e o seu anterior pojecto Utla), Nills Petter Molvaer e Mari Boine que compõem das músicas mais criativas e inovadoras, que poderiam ser construídas em qualquer parte do mundo, mas que possuem um ADN nórdico fortíssimo.

No Porto, não há apenas invicta-tango, há também invicta-fado-de-câmara tresmalhado de tango e ranchera mexicana. Os responsáveis são duas Marias (Fátima Santos – acordeão, Ianina Kmelik – violino) e um Manel (Zagalo – Percussões), além do violoncelo de Vanessa Pires e da belíssima voz de Alexandra Guimarães que dá, com a sua pronuncia do norte, um tom algo exótico a fados lisboetas. Seistanto Mundo aborda o fado de forma descomplexada a partir do universo da música de câmara (um pouco à semelhança do que os Realejo do início faziam com uma certa folk europeia, ou mesmo os Frei Fado Del Rei com o flamenco – e também com o fado). O projecto ainda está no início e promete convidar vários músicos de outras paragens para podem este fado de câmara a dialogar com outras músicas. Neste espectáculo, o convidado de honra foi o harpista e charangista paraguaio-mexicano Celso Duarte. Sim, aquele músico excepcional da banda de Lila Downs que se perde em solos explosivos como em “La Iguana” (Ora oiçam-nos ao vivo no álbum “Lila Downs Y la Misteriosa en Paris”). Apesar de pouco tempo em palco (sortudos foram os que jantaram num certo restaurante de Vila do Conde onde o Mexicano deu um recital de uma hora na esplanada) houve uma simbiose curiosa a partir da sua harpa entre “Alfama” e “La Llorona”. O amor que o quinteto do Porto sente pelo fado, o largo sorriso de Ianina – porventura o mais belo de todo o festival – o diálogo entre a canção de Lisboa e a música nostálgica, desamor e tragédia, desculpam o facto do repertório português ser algo batido (“Alfama”; “Barco Negro”). Ficamos ansiosamente à espera do primeiro disco deste projecto mas, se possível, com fados inéditos. Bons escritores de poemas para fado, de Tiago Torres da Silva a João Monge e Amélia Muge, não faltam.

Talento criativo em potência, Bilan, cabo-verdiano radicado no Porto, é verdadeiro diamante em bruto. Tem presença em palco, uma agilidade notável que lhe permite ir ao fundo do poço da música tradicional de Cabo Verde (oiçam-no com que alma e profundidade canta “Papa Jukin Paris”), à bossa nova, aos blues e, sobretudo a um rock tenso, sónico, estridente e algo experimentalista (que grande guitarrista o Tiago Mota dos Uno Eskimo). Numa costa sobrelotada como a portuguesa, em que não conseguimos pousar uma toalha sem mandar areia para o vizinho, Bilan tem uma praia semi-deserta (como a da Ursa) para explorar. Haja pulso e orientação para cortar gorduras (como alguns momentos de percussão despropositados que quebram o espectáculo) e bom senso para evitar momentos Deco como aquele em “Selva” que manda bocas sobre direitos de autor.

Ao que parece, um músico da área do folk tem de se esforçar dez vezes mais para ter a mesma visibilidade de um músico rock. Por exemplo, um grupo como os Galandum Galundaina com uma obra tão consistente quanto a longevidade do projecto não consegue actuar nos principais palcos dos festivais de músicas do mundo em Portugal, ao invés de outros projectos recentemente surgidos que conseguem cativar outras audiências mais jovens. A lei do mercado dita que músicos que não tenham aquela imagem cuidada de modelo ou de autor de série televisiva, tenham de viver num verdadeiro purgatório do anonimato e de engrossar a extensa lista de artistas ignorados pela rádio nacional. Não deixa de ser por isso estranho que individualidades com largo conhecimento destas áreas tenham ficado agradavelmente surpreendidos com a actuação dos algarvios Marenostrum. Como tem sido habitual, a banda respira a maresia algarvia, a polvo, a ostras da Ria Formosa. Só é pena não servirem xarém e dons rodrigos à arraia miúda que os vê. Nenhuma outra banda tem o sotaque cerrado algarvio, o corridinho e a arte da tradição dos tocadores de acordeão que animam os montes da serra algarvia tão intrincado nas veias. Nenhuma outra banda tempera sabiamente esta génese regional com morna, folk do atlântico norte, áres de surf rock, disco, ska e outras músicas caribenhas (os sopros no final de “Trouxalamoucha” são divinais) e uma intensa energia klezmer. O espectáculo esse, certinho e certeiro, como sempre, manteve o final apoteótico com dois acordeões em despique o baixista com ar de taliban e inventor de um novo dialecto islâmico – Paulo Machado – dialoga com João Frade em ritmo estonteante. Ah, e que pena não terem actuado também o quarteto de sopros Quartax dirigido por Lino Guerreiro.

[continua]

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