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Med 2011: Como se diz bravo em paquistanês? [1/4]

Desde a altura em que os escoceses Capercaillie actuaram no Med que o conceito de festival de música do mediterrâneo deixou de fazer sentido. Aliás, à luz do cartaz desta 8ª edição do Med, cada vez mais questionamos que universo é esse das “músicas do mundo”.

 

O Med é actualmente um “buffet” de muitas sonoridades que vão da clássica ao rock e à música de dança, do jazz e da música contemporânea às diversas variantes do fado e das músicas sagradas, tradicionais (rurais) regionais e locais em confronto em confronto com a modernidade (urbana). É um palco privilegiado para projectos locais (não interessa se enquadrados no cada vez mais confuso conceito de “world music”) como é o caso de muitos novos e desconhecidos artistas que actuam nos palcos menores do arco e da bica (em frente a longas e barulhentas mesas de restauração), como por exemplo os Migna Mala. Projecto onde fui encontrar um enorme baixista e acordeonista – Paulo Machado – dos injustamente subvalorizados Marenostrum. Os Migna Mala ainda se encontram um pouco verdinhos mas apresentaram interessantes ideias que requerem tempo de maturação como os cânticos “mignamalaenses” que procuram resgatar uma qualquer expressão musical celebratória xamânica. Caso estivéssemos na Escandinávia poderíamos afirmar que se tratava de um joik progressivo, modernizado, à imagem e semelhança dos noruegueses Adjágas. Fica o desejo do amadurecimento deste projecto.

Lula Pena, cada vez mais solta em palco, conduzia-nos diferentes actos através de uma viagem hertziana como se “Troubador” fosse uma antena de rádio de onda média. Com a sua guitarra e alma e voz de phadista, Lula Pena “sintoniza” (sem o habitual ruído dos discos da Sublime Frequencies, mas com os saltinhos destes) muitos fados, modas alentejanas (“Rola”), açoriana (“Bravo”), canção francesa, flamenco, MPB, tango, etc. Tudo pequenas peças de um puzzle orgânico que vai sendo construído e transmitido com algumas interferências que tentavam sobrepor-se à “frequência” de Lula: o speaker de serviço que motivou a interprete a questionar “- Quando é que este gajo se cala?” e o horário do espectáculo de António Zambujo na Cerca, um quarto de hora mais tarde.

Zambujo, que quer ser “o camisola dez” e “ter o Benfica nos pés”, está a tornar-se num verdadeiro “maestro” de fino recorte técnico. Um Aimar numa “equipa” nada convencional (constituída por guitarra clássica, guitarra portuguesa, contrabaixo, cavaquinho e clarinete-baixo) que transfigura a canção urbana de Lisboa com alma de cante alentejano numa música atlântica, mediterrânica e tropical interpretada por um autêntico “construtor de jogo” que espalha perfume por todo o palco a cantar, a sussurrar e a assobiar, capaz de pôr a “equipa” a jogar a várias velocidades, pautando o “jogo” com mais ou menos intensidade, com “jogadas” de fino recorte técnico. O intérprete alentejano tem marcado golos decisivos (com a mão de Vata, que nos despertam a atenção) por essa Europa fora, sobretudo na maior feira de músicas do mundo – a WOMEX – onde conquistou com mística uma enorme “claque” de produtores musicais, entre os quais o canal de televisão francês Mezzo que transmitiu o showcase de apresentação do repertório do álbum “Guia” (editado pela etiqueta norte-americana World Village que também edita Ana Moura nos EUA). O mesmo que António Zambujo trouxe agora no Med.

Há sete anos atrás, quando vi pela primeira vez o bretão Thierry Robin em cima de um palco nacional (Tenda Raizes do Rock in Rio) tirei-lhe esta fotografia: “Thierry Robin, bretão, de alma cigana, é um músico de real excepção. Pertence à restrita casta de exímios improvisadores de cordas e de delicados artesãos que embelezam a sua arte com infinitos rendilhados. Além de exímio executante de alaúde, bouzouki e guitarra, que o coloca num pedestal semelhante ao do sueco Ale Möller, do grego Ross Daly, ou de um outro francófono – Patrick Vaillant –, Robin é um verdadeiro alquimista da composição, um Merlin dos tempos modernos, que consegue juntar, num único caldeirão, as músicas ciganas que vão de Espanha à Ásia Central, passando pelos Cárpatos e pelo Báltico. (…) É notável como o flamenco, que parece um género musical confinado à Península Ibérica, é a locomotiva através do qual Robin e os seus músicos efectuam uma enriquecedora viagem sem freios, pela linha do Oriente. A guitarra e o alaúde de Robin, a divina voz cigana (de flamenco) do espanhol Pepito Montealegre, que chega a roçar o céu qawwali e a fazer a devida vénia ao mestre Nusrat, quebram fronteiras terrestres. A combinação perfeita destes elementos com percussões afro-latino-americanas-e-arábico-andaluzes (com destaque para o cajon e a “ocean drum”) de um talentoso instrumentista brasileiro Zé Luís Nascimento e com o acordeão de Francis Varis algo “brastchtiano”, contaminado quer pela delicadeza melódica da bal musette francesa (pouco), quer pelo desvario cigano dos balcãs (muito), constituem a fórmula de uma música que viaja livremente como o ar, através do tempo e da geografia.»

Faiz Ali Faiz já passou pelo nosso país por diversas vezes, ora formato mais clássico acompanhado pelo seu ensamble de qawwali (Aveiro e Sines), ora inserido numa das muitas criações da editora e produtora francesa Accords Croisés com um dos projectos em que funde a música de devoção dos Sufis com flamenco: Qawwali-Flamenco com o espanhol Duquende (em Lisboa, no Museu do Oriente).

Se, com o seu ensemble paquistanês, Faiz Ali Faiz se notabiliza como um cantor que encurta a distância entre o céu e a terra e que é provavelmente a voz mais intensa do qawwali depois da partida para o Olimpo de Nusrat Fateh Ali Khan, com a criação Qawwali-Flamenco não houve um perfeito entendimento entre Faiz e Duquende pois este foi um espectáculo feito em três partes: qawwali, flamenco e, finalmente qawwali-flamenco (muito pouco para quem desejava maior diálogo).

Toda esta prosa (desculpe-me caro leitor) para regressar ao Med. É que, no espectáculo Jaadu, que une os ensembles de Thierry Robin (constituído pelo inevitável percussionista brasileiro Zé Luís Nascimento que se apresenta muito mais solto com o bretão do que com Mayra Andrade; com o acordeonista Francis Varis e com o tocador de gumbass – meio guimbri meio baixo – Kalou Stalin) com o de Faiz Ali Faiz é muito mais do que o provocar forçado de um encontro, de fusão de universos musicais. É diálogo puro e duro do princípio ao fim em que o quarteto do francês é o combustível aditivado que permite aos pasquistaneses andarem em quinta e sexta velocidade e que oferece muito mais intensidade e imprevisibilidade às dinâmicas vocais e ao improviso de Faiz Ali Faiz. Brilhante.

Depois de um repasto desta natureza, por mais variedade atractivos que sejam os acepipes que se encontrem no buffet, dificilmente o nosso estômago tinha espaço para digerir o que quer que fosse. O bombom Muchachito Infierno era acuçar demais para a minha tensão arterial.  Ficou a ideia de um concerto fluído para um publico adepto desta evolução mais rockabilly da cultura de rua, das ramblas, da rumba catalã onde, mais uma vez, não faltou o inevitável pintor Santos de Veracruz que criou mais um quadro durante o espectáculo.

Da cultura do Bombo Infierno para a arruda de gaita-de-foles (sem bombo). A festa prosseguiu até às quatro da manhã com muñeiras galegas e modas transmontanas entre cup cakes e copos de cerveja num dos largos de restauração. Haja força para continuar a festa.

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1 Comment

  1. Olá Luis
    Tudo bem?
    Finalmente a “critica” ao MED, ou parte dela.
    Realmente Faiz Ali Faiz com Titi Robin, depois Mulatu Astatke e Afrocubism (ssim, por esta ordem) foram os grandes concertos do MED. Grandes, mesmo grandes.
    Tambem gostei de Lula e Antonio Zambujo.
    Fico à espera do resto.
    Entretanto vou à Terra Pura do Pucarinho.

    Beijinhos

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