Entrevistas

Susana Baca: «Cantar é como cozinhar diariamente»

Susana Baca, afro-peruana e uma das maiores vozes da música negra elaborada na cozinha latino-americana, regressa ao nosso país para voltar a apresentar a sua mais recente criação “Afrodiaspora”. Álbum que explora outras músicas das comunidades negras nas américas, além Perú. É nos dias 9 e 10 de Maio, no Porto (Casa da Música) e em Lisboa (CCB), respectivamente.

As Crónicas da Terra aproveitaram a ocasião para conversar, a partir de Lima, com a cantora, compositora, etnomusicóloga e excelsa cozinheira.

– Para além do seu interesse na pesquisa de registos sonoros afro-peruanos, dedica igualmente um enorme atenção à cozinha dos seus antepassados. Até que ponto a música que pesquisa, recria e interpreta pode influenciar os seus cozinhados e vice-versa?

Para uma mulher negra e artista que tem vivido no seio de uma família negra e que desde cedo entrou em contacto com a música e possui uma  relação com os seus antepassados de veneração, não há qualquer divisão. A música e a cozinha fazem parte de um todo.

Nos primeiros anos de artista e cantora, cantava somente o que tinha aprendido em ambiente familiar. Quando sai do meu mundo, percebi as diferenças, as exclusões e iniciei um processo de reflexão sobre a minha música de forma dar maior sentido ao meu trabalho. Aí, a minha arte de cantar, tornou-se mais forte.

– Consegue fazer o exercício de transpor os sabores salgado, açucarado, avinagrado, picante para os vários tipos de música negra que conhece?

Sim! Na música afro-peruana o sabor salgado, doce, picante, expressa-se no ritmo, na cadência da melodia, na complexidade dos compassos. Aí encontra-se o sabor, a sensualidade, o erotismo e a manifestação de carinho. Poderia afirmar que cantar a música da minha terra e da minha infância é um prazer de todos os sentidos.

– Em que ponto se encontra actualmente o seu trabalho no Instituto Negrocontinuo?

O Instituto Negrocontinuo nasceu como um centro experimental para a música e para a formação académica de jovens criadores sem  recurso. Nos últimos anos tivémos de deixar a parte académica de formação de jovens, com muita pena nossa, para converter o Negrocontinuo num espaço de investigação dirigido a muitos jovens e artistas e que, com o tempo, consolidou a biblioteca que possui um acervo editorial, uma colecção discográfica e um banco de imagens.

– Ainda faz recolhas de som entre as comunidades de músicos afro-peruanos?

Sempre. Os afro-peruanos são uma viva e dinâmica referência cultural que mudam e se integram. Sempre serão uma uma referência para mim, fazem parte da minha família.

– Os arquivos que organizou têm servido de fonte de trabalho para novos músicos peruanos? Que músicos são esses? Esses músicos terão alguma hipótese de também divulgar a música afro-peruana pelo mundo inteiro?

Sim. Os arquivos não só servem de fonte de trabalho para novos músicos, como também para académicos, investigadores peruanos e de muitas nacionalidades que nos visitam. A lista de artistas é enorme. De qualquer forma, todos eles têm contribuído para divulgar, entre outras comunidades, a música afro-peruana.

– Em “Afrodiaspora” explora outras músicas de origem aficana criadas em diversos países das Américas do Sul, Central e do Norte. Como é que foi escolhendo este repertório tão diversificado que inclui cumbia colombiana, forró brasileiro, plena de Puerto Rico e guanguncó de Cuba, entre muitos outros estilos? Este disco resulta dos encontros com músicos e culturas que foi tendo quando se encontrava em digressão, quer nas Américas, quer em outras partes do mundo?

Mais do que ter feito uma selecção de géneros musicais por países, a ideia era elogiar as músicas de muitas nacionalidades da nossa América que se unem através da raiz africana. Além disso, estas músicas e ritmos celebram a vida dos africanos que, apesar de terem sido trazidos com dor para as Américas, fazem a festa. Existem muitos mais géneros musicais de raiz africana na América, mas aqueles que escolhi traduzem mais esta ideia de celebração. “Afrodiaspora” é um encontro de músicas a partir da minha percepção afro-peruana.

– Como explica que haja actualmente uma enorme diversidade de músicas negras nas américas (forro, plena, cumbia, merengue, champeta, blues, etc) quando a origem (Continente Africano) é a mesma? Até que ponto o contacto entre os africanos, europeus e etnias indígenas americanas provocou essa diversidade?

Todas as músicas criadas pelos negros na América têm que ver com a sua capacidade de se adaptarem a povos e meio-ambientes distintos. As músicas afro-americanas ou a música afro das Américas evoluíram através da miscigenação com as culturas europeias (portuguesa, espanhola ou anglo-saxónica). Tanto a nossa música, como a nossa cozinha e o nosso baile, resultam de encontros culturais transcontinentais.

– Como já referi, este disco têm muitos estilos de muitas proveniências mas mantém uma identidade muito próxima dos seus trabalhos anteriores. Comparando com a sua arte de cozinhar, será que utilizou outros ingredientes que não existem na sua gastronomia (feijão preto e farofa do Brasil, abacate e pimentos padron do México), mas a combinação de sabores que fez entre eles remete-nos inevitavelmente para a culinária Susana Baca?

Obviamente. Cantar é como cozinhar diariamente. Há dias em que tenho vontade de cantar-cozinhar com sabores mais nativos, noutras alturas de cantar-cozinhar com sabores mais picantes ou mais doces. “Afrodiaspora” é um resumo de tudo isso, porque aí encontra-se impregnado a minha experiência de conhecer outros sabores, outros ingredientes, outras músicas. Creio que “Afrodiaspora” contém feijão, abacate, pimentos picantes, etc, mas estes são cozinhados no Perú. Na cozinha da Susana.

– Neste disco, praticamente, todas as canções são latino-americanas, exepto uma – “Reina de Africa” – do andaluz Javier Ruibal. Porquê? É uma forma de ir à origem daquilo que provocou a diáspora dos povos africanos?

Quando conheci o Javier Ruibal senti que o seu trabalho de composição, o seu estilo e poesia, erguia pontes harmoniosas para entender como o africano e a América Latina é culturalmente filtrada, contaminada pelo europeu, pelo português, pelo espanhol, pelo anglo-saxão. Isto é muito importante, porque creio que a música dos afro-americanos é a música culturalmente mais integradora do Século XXI. Aí, nada pode ser excluído.

– Não sente vontade de ir à origem da sua música, a África (Mali, Cabo Verde – Ilha de Goree, Senegal, etc), para compor um novo disco, à semelhança do que fez, por exemplo, Dee Dee Bridgewater em “Red Earth”, ou Corey Harris em “Mississipi to Mali”?

Sim! Sempre senti uma grande vontade em conhecer a raiz da nossa música afro-americana e tenho pesquisado a música do Mali, de Cabo Verde, do Senegal, da Nigeria, de Madagascar.  Reparei igualmente que a música dos africanos de África também possuem uma presença importante do europeu. Então, mais do que ir ao encontro das raízes da minha música, procurei e encontrei complementaridades, irmandades sonoras. Adoro a Dee Dee e tenho esse disco. Espero em breve poder editar um disco com esses encontros africanos.

 

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