Celina da Piedade – “Sol”
Sons Vadios (2016)
Ao terceiro disco, Celina da Piedade coloca-se definitivamente à frente do acordeão e assume-se, sobretudo, como cantautora. É claro que o lado de instrumentista e de eterna animadora de danças tradicionais continuará omnipresente, mas em “Sol” destaca-se sobretudo o salto qualitativo que Celina da Piedade dá na escrita de canções, nos arranjos e na produção de um disco assumidamente pessoal, como se estivesse a ver-se ao espelho. “Assim Sou Eu”, com letra António Avelar Pinho e música de João Gil (com quem partilha os Tais Quais), é canção autobiográfica de pura pop solarenga. “Acredito no Caetano, no Zambujo que é meu mano”… mais pop folk campestre e imaculada acompanhada à guitarra e piano (quase sem acordeão). Em “Amores de Jericó” lambem-se feridas de amor em toada densa, pausada e dramática acentuada pelo virtuoso violoncelo de Marco Pereira e desenvolvida mais adiante, na brilhante adaptação para o português de “Piedra Y Camino” do argentino Atahualpa Yupanqui. Canção que evoca ambientes de excelsa beleza melancólica da malograda Lhasa de Sela, ou da saudosa Amparo Sanchez em diálogo com Joey Burns dos Calexico, algures entre Tucson e Habana.
A veia latino-americana adensa-se na versão de “A Linha e o Linho” de Gilberto Gil. Mais uma vez, destaca-se a simplicidade da voz e da guitarra clássica de Nilson Dourado numa canção que é, sobretudo, mais um manifesto de Celina da Piedade que atravessa todo este disco: a necessidade de preservar as artes manuais, de continuar a bordar, a fazer as peças de lã que traz ao pescoço e que embelezam o booklet do disco.
Neste verdadeiro sistema solar com planetas cintilantes e sobre-aquecidos (mas também frios e sombrios) que é “Sol”, escuta-se igualmente o apelo da maternidade através das canções de embalar, ora a “Canção de Nanar” da tondelense Teresa Gentil, ora a desempoeirada e arejada versão da moda tradicional alentejana “Aurora Tem Um Menino”.
O Alentejo que se encontra omnipresente na voz de Celina da Piedade (desde os tempos dos Uxu Kalhus aos Tais Quais) em saudável comunhão com o universo das danças tradicionais europeias dos belgas Naragonia, resulta num belíssimo “mashup” de “Altinho” e de “Les Deux Frères” em modo valsa dedicado aos dois rebentos de Toon Van Merlo e Pascale Rubens.
“Sol” é pois um disco cheio de vida(s) que merecem ser acompanhadas de perto e acarinhadas. Tal como a criança do provérbio africano (evocado no press-release deste disco) que, quando nasce, recebe as graças de toda uma aldeia.