Melech Mechaya – “Aurora”
Felmay (2017)
Se, por estes dias, o cometa Salvador Sobral tem contribuído para a literacia musical dos mais curiosos que vão descobrindo por essa internet a icónica figura de Marion Harris (e oxalá possam igualmente apreciar as ligações entre os nomes Fernando Pessoa, Luís Figueiredo e Sofia Vitória e chegar ao álbum “Echoes”…), nestes últimos 10 anos, o outrora OVNI nacional Melech Mechaya popularizou e nacionalizou a música das festividades nubentes da diáspora judaica. Apesar de venerarem os grandes mestres como os norte-americanos Klezmatics ou os polacos Kroke, os Melech Mechaya edificaram e consolidaram o seu próprio klezmer-melech feito de rigor musical, contínuo experimentalismo, performances interactivas e de fortíssima coesão com a sua fiel audiência e uma admirável e belíssima narrativa gráfica em tons de sépia, surreal e nostálgica. Fórmula mágica que cedo extravasou fronteiras e, para espanto de todos, a banda portuguesa que toca klezmer-com-todos conseguiu dar mais de 150 concertos em 10 países de 3 continentes, têm o principal agente de espectáculos em Espanha (Mapamundi) e o actual editor dos seus discos em Itália (Felmay). Todo este, tão anormal quanto singular percurso, responde à pergunta que muitos de nós ousamos formular: – Se há tanta oferta de música klezmer (mais autêntica) na Europa e nos Estados Unidos, como é uma banda portuguesa consegue tocar além fronteiras com tanta regularidade?
Ao quarto álbum, “Aurora”, os MM anunciam um novo ciclo que resulta da obsessão de terem gravado aquele que é para o grupo ambicionava ser o melhor disco. “Aurora” é, sem dúvida, o mais cuidado e apurado álbum dos MM que, mantendo a canina fidelização ao klezmer, consegue explorar novos e ousados caminhos. O ciclo “Aurora” (o tema) e “Cirrus Nimbus” que abre e encerra o disco amplia a vertente cinemática de um universo fantástico que evoca ambientes à Tim Burton e onde tão bem cabe (no tema inicial) o piano tenso, dramático e algo “cartoonizado” de Filipe Melo. O lado lúdico a pedir performances criativas mantém-se em muito bom nível em “Olarecas” (que nome sugestivo…) e “Ricochete” e contrasta bem com o lado mais contemplativo, cósmico e orquestral de “Poça de Dominó” e experimental de “Fado Saltério” que, como o nome indica, inclui saltério percutido pelo clarinetista a agitador-mor Miguel Veríssimo.
E num disco de MM maioritariamente instrumental, não poderia deixar de haver vozes convidadas. Em “Aurora” apesar de não haver uma cumplicidade tão forte quanto aquela que foi sendo edificada com Mísia, saúda-se a participação da carismática La Mari dos andaluzes Chambao em “Un Puente” que leva o klezmer-melech para o universo do flamenco onde o guitarrista André Santos se sente como peixe dentro de água; e, sobretudo, o notável exercício de desconstrução do universo melechiano proporcionado por David Santos aka Noiserv que transforma a canção em língua inglesa “Boom” no grande momento “ahhhhh” de “Aurora”. Saudemos irmãos o advento desta nova era melechiana.