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MAHMOUD AHMED: Caça ao tesouro Amárico

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MAHMOUD AHMED no SET | ©Cristina Pinto Pinto

MAHMOUD AHMED | Sons Em Trânsito | Teatro Aveirense| 1 de Dezembro de 2005 | meia casa

MAHMOUD AHMED é uma das grandes figuras da música africana que passará pelo FMM de Sines deste ano, a 26 de Julho. Este espaço recupera a apreciação do espectáculo de há ano e meio atrás, no Sons em Trânsito de Aveiro.

MAHMOUD AHMED pode ter levando muita pancada ao longo da vida. Pode ser uma pessoa introvertida, tímida, mas exorciza em palco todos os demónios que o querem acompanhar. Ao cantar em em língua amárica de forma poderosa (tendo conseguido contornar sempre uma certa limitação vocal de rouquidão provocada pela brusca mudança de temperatura entre o seu e o nosso país), ergue o polegar, como se nos tivesse a avisar para termos muito cuidado, pois o perigo espreita por todas as frestas. O modo como canta é de tal forma intenso, inflamado que, apesar de não percebermos uma palavra que seja, conseguimos sentir tudo aquilo que o etíope nos tenta transmitir. À semelhança da expressividade dos “lautaris” ciganos romenos da TARAF DE HAÏDOUKS.

O mais curioso é que a sua banda, sem possuir um único instrumento a que se possa apelidar de tradicional africano, de a sua música ser de fusão com soul, r&b, funk e jazz americano, toca de forma profunda na alma africana. Dois sexy-saxofones tenores que piscam o olho ao afro-beat de Lagos, um teclado e um baixo groovie q.b., uma guitarra a fazer lembrar, por vezes, os esguios rendilhados zairenses e uma bateria, conduzem-nos por uma viagem sonora à multi-culturalidade de África. Através de um caminho obscuro, algo nebuloso (como se estivéssemos em Bruxelas durante três meses debaixo de chuva intensa, ou num bunker de uma cidade debaixo sob fogo aéreo), com algumas abertas pelo meio a demonstrar um sol radioso, expressas nos momentos de transe que evocam os espíritos gnawa do norte de África e numa certa pureza e beleza melódica, capaz de evocar a toda a alegria da música nubiana (superiormente expressa no malogrado ALI HASSAN KUBAN e nos seus discípulos SALAMAT).

65 anos. Para muitos, esta idade representa o fim de um ciclo de vida levada de rotina em rotina. “Arrumam-se as botas”, mas também se abrem novas cortinas e se acalenta a esperança de se concretizarem os sonhos que foram sucessivamente adiados.

65 anos é a idade de um dos músicos vivos mais interessante de África. O etíope encontra-se agora a viver uma nova vida artística. Ao longo de mais de quarenta anos de carreira (que lhe garantem o direito a uma reforma descansada), MAHMOUD AHMED viveu várias vidas como músico, com altos e baixos, determinados pelos sucessivos regimes mais-ou-menos-tirânicos que têm assolado Abyssinia (Etiópia em amárico).

Durante os anos 60, fez parte da “Bodyguard Band” do Imperador Haile Selassi (o tal que os rastafarianos consideravam como sendo o Messias negro, a incarnação de Deus na terra e que viria a falecer em 1975, um ano depois de ter sido derrubado do poder). Nos anos 70, gravou freneticamente grande parte da sua extensa discografia. Até 1978, quatro anos depois da implementação da ditadura de Mengistu (em 74), cuja censura determinou o fim da indústria discográfica local.

MAHMOUD AHMED só em 1986 se torna conhecido na Europa, através da edição de “Ere Mela Mela” pela editora belga Crammed Discs. Curiosamente, uma edição revista e aumentada de um disco lançado em 75, na Etiópia.

Mengitsu “caiu da cadeira” em 91, mas os sucessivos governos etíopes sempre se revelaram instáveis, repressivos. MAHMOUD AHMED e outros grandes cantores etíopes podem cantar canções cujas letras relatam o amor e ignoram a política, mas essas mesmas palavras à luz da “dupla interpretação” (“senna werq”), são entendidas pela audiência local como desabafos, avisos, perante a tirania governamental.

Constrangimentos que explicam o facto de MAHMOUD AHMED já não editar um disco de originais há cerca de 30 anos e de, depois da exposição mundial de “Era Mela Mela” em 86, ter efectuado muitos poucos concertos na Europa, nos 19 anos seguintes. MAHMOUD AHMED actuou pela primeira vez em Inglaterra (no WOMAD) há, somente, seis meses.

Tudo isto para enfatizar a enormíssima noite que se viveu no interior do Teatro Aveirense. MAHMOUD AHMED pode ter levando muita pancada ao longo da vida. Pode ser uma pessoa introvertida, tímida, mas exorciza em palco todos os demónios que o querem acompanhar. Ao cantar em amerínio de forma poderosa (tendo conseguido contornar sempre uma certa limitação vocal de rouquidão provocada pela brusca mudança de temperatura entre o seu e o nosso país), ergue o polegar, como se nos tivesse a avisar para termos muito cuidado, pois o perigo espreita por todas as frestas. O modo como canta é de tal forma intenso, inflamado que, apesar de não percebermos uma palavra que seja, conseguimos sentir tudo aquilo que o etíope nos tenta transmitir. À semelhança da expressividade dos “lautaris” ciganos romenos da TARAF DE HAÏDOUKS.

É na dança tradicional de transe “eskeusta” (do seu povo gouragué), dominada por sucessivos momentos de ombros, que AHMED consegue fazer movimentar e levantar os rabos que se enfiam preguiçosa e confortavelmente nas cadeiras do Aveirense. De figura, inicialmente um pouco distante, AHMED cedo segurou e comandou o público com a prece “abet” de “Ashkarou” transformada em palavra de ordem. Turba que não resistiu, no final, a dançar freneticamente na boca de cena, por entre as cadeiras, nas zonas de entrada e saída, em qualquer sítio onde houvesse o mínimo de espaço e não tivéssemos de pisar os mais refastelados.

O mais curioso é que a sua banda, sem possuir um único instrumento a que se possa apelidar de tradicional africano, de a sua música ser de fusão com soul, r&b, funk e jazz americano, toca de forma profunda na alma africana. Dois sexy-saxofones tenores que piscam o olho ao afro-beat de Lagos, um teclado e um baixo groovie q.b., uma guitarra a fazer lembrar, por vezes, os esguios rendilhados zairenses e uma bateria, conduzem-nos por uma viagem sonora à multi-culturalidade de África. Através de um caminho obscuro, algo nebuloso (como se estivéssemos em Bruxelas durante três meses debaixo de chuva intensa, ou num bunker de uma cidade debaixo sob fogo aéreo), com algumas abertas pelo meio a demonstrar um sol radioso, expressas nos momentos de transe que evocam os espíritos gnawa do norte de África e numa certa pureza e beleza melódica, capaz de evocar a toda a alegria da música nubiana (superiormente expressa no malogrado ALI HASSAN KUBAN e nos seus discípulos SALAMAT).

MAHMOUD AHMED merece descobrir os Jardins de Éden. Merece o céu. Mas deixem-no andar por cá, pelo menos mais 40 anos.

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