Entrevistas

[entrevista] CORDEL DO FOGO ENCANTADO: “o crime não sabe ler” [parte 3/3]


LIRINHA no FMM de Sines | (c) Mário Pires

O nome CORDEL DO FOGO ENCANTADO é inspirado na literatura de cordel, na poesia trovadoresca, medieval e das cantigas de amigo de origem portuguesa. Que diferenças há entre a vossa e a nossa literatura de cordel?

Nós não falamos em cordel, falamos em cordão. É literatura de cordão. Só que os portugueses e os espanhóis, na época da colonização, deram nome a essa literatura que se pendurava nas feiras de cordel. Chegou lá em forma de quadrinhas de amor e desenvolveu-se…

O cordel do nordeste brasileiro adquiriu uma linguagem regionalista muito própria.

Essa literatura chegou a todo o Brasil e desenvolveu-se de forma impressionante no Sertão. Há cerca uma centena de géneros de métrica e rima (não mais a quadra), como a sextilha, sete linhas, mourão voltado, decassílabo, galope à beira mar, galope alagoano. Tudo isso é forma de rimar e metrificar. Como o soneto camoniano.
Mourão Voltado que vem dessa coisa dos mouros. Desenvolveu-se desta forma impressionante nesta região e ficou congelado noutras regiões do Brasil e, inclusive, em Portugal. Outro facto interessante é a herança moura herdada pelos portugueses que hoje está presente na música nordestina com a rebeca, a sanfona. Talvez até mais na nossa música actual do que na de Portugal. A literatura de cordel não é a poesia improvisada. Mas eles até fazem a mesma coisa (o poeta canta de improviso). Cordel é uma poesia exposta à venda e que tem as suas regras (quantidade de páginas, geralmente são sextilhas ou décimas). É uma literatura que teve o seu auge na década de trinta. Perdeu muita força porque ocupava a função da televisão e da rádio. Depois do jantar, as pessoas reuniam-se para ler cordel.

Há uma história maravilhosa para você ver a força do cordel. A morte de um presidente do Brasil chamado Gertúlio Vargas que se suicidou na década de 40, depois da 2ª Grande Guerra Mundial [governou entre 1930 e1945]. Ele era muito querido pela população. Morreu às 9h30 e às 2h da tarde já havia na minha cidade um cordel com a história da morte dele, já impresso e com capa, e teve uma tiragem de 300 mil exemplares. Perguntam muito se nós somos responsáveis pelo reavivar do cordel. Não é possível, o cordel não voltará. Isso é saudosismo. Ele vai-se transformar em outras coisas e vai estar presente na sua alma.

No livro “Assim falava Lampião”, que colecciona para cima de 2500 palavras e expressões nordestinas, podemos verificar o quão esta gente conseguiu ser tão criativa ao nível da linguagem (que o próprio Brasil “civilizado” não conhece).

Sem dúvida. É um país de dimensão continental. As regiões são muito diferentes. A literatura de Guimarães Rosa, por exemplo, é outro Sertão. É o Sertão de Minas Gerais, rico, com ouro. É uma linguagem que a gente às vezes também não entende direito. Um estudioso, Luís da Câmara Cascudo (que já morreu) foi, talvez, aquele que já escreveu mais sobre essas influências e como a nossa poesia foi influenciada por isso.

O que é que te motiva a declamar um poema de Zé da Luz, “Ai Se Sêsse”? É a simplicidade da escrita, com imenso cheiro a terra, a ruralidade?

Neste caso foi um encontro que tive com essa poesia muito cénica, mais pela imagem desse absurdo de rasgar o céu. Conheci o Zé da Luz através de outras poesias de 20 minutos que eu fazia no começo, no CORDEL. Era um absurdo, mas eu fazia isso. Era em salas teatro. Tinha a introspecção do espaço. Era muito forte. Um poema como “O Crime não sabe ler” era uma jogada incrível, maravilhosa, porque é do início do século passado e ele fala que viu a mulher receber uma carta de um cara. Essa poesia tem uns vinte minutos, é uma saga. Ele acompanha a mulher, pega essa carta, só que ele não sabe ler e termina matando a mulher. Leva a carta ao delegado e verifica que ela estava pedindo ao cara, por amor de deus, que parasse dizer essas coisas, pois ela amava o marido. Cheguei ao “Ai Se Sêsse” através destas poesias grandes. Escutava isto em circo, num momento em que se parava e se dizia poesia. Cresci escutando isto. Os meus ídolos eram declamadores. Comecei como declamador com 11 anos. Dois cantadores viram-me recitando poesia e chamaram-me para os acompanhar numa tournée e para actuar nos intervalos deles. A minha função era mesmo a de declamador. Tem o cantador, o repentista que faz na hora, o violeiro e o declamador.

Há pouco falavas nas influências mouriscas. Mas na vossa música há sobretudo uma miscigenação entre índios americanos e escravos africanos.

Isso é o didáctico. Temos uma música – “Antes dos Mouros” – que fala nisso. É muito comum no Brasil aprendermos que a nossa raça é uma mistura que vem de Portugal que já era um país com uma série de influências, com a ocupação Moura. A presença dos negros de África no nosso país sempre foi muito forte. Teve uma era em que era metade da população. Os nativos também eram muitos. A gente vem disso, mas nós brincamos um pouco e perguntamos se “- será que é mesmo assim?”; “Será que a percussão vem de África?”. Um dia, um estudioso chamado Pedro Américo que estuda muito Portugal, mostrou-me um disco de percussão incrível, de umas senhoras tocando uns tambores. Será que não temos essas influências?

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