Entrevistas

Rabih Abou-Khalil – “Amigos em Portugal”

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Rabih Abou-KHalil, Jarrod Cagwin, Joachin Khün

Rabih Abou-Khalil, mestre de alaúde, improvisador de excelência, de naturalidade libanesa e residência, há mais de vinte anos em Munique é, sobretudo, uma pessoa fascinante que absorve a cultura dos países por onde passa. Assistir a um sound-check de Rabih é uma oportunidade única de o ver a comunicar em alemão, inglês, francês, italiano. Assistir a um espectáculo deste cidadão de Beirute, mais do que ficar supreendido pela forma como o improvisador de alaúde comunica com o pianista alemão Joachim Khün e com o percussionista norte-americano Jarrod Cagwin, é deliciarmo-nos com o seu humor expresso em língua portuguesa.

Nesta conversa que teve lugar no dia em que o trio actuou na Culturgest, Rabih, como excelsa «memória de elefante» que possui pergunta-me no final o meu nome. «- Luís? – Rei? – O seu nome não me é estranho». Abou-Khalil recordava-se quem este vosso escriba tinha tentado ligar-lhe, para a sua residência alemã, há quase dez anos com o intuito de o entrevistar. Expliquei-lhe que tinha tentado contactá-lo várias vezes, que me atendeu sempre o gravador de chamadas e que depois desisti. «- Então vamos fazer essa entrevista agora», propôs-me com o seu aguçado sentido de humor, simulando voltar ao sofá onde havia estado na última meia-hora.

Depois do espectáculo na Culturgest, Rabih Abou-Khalil regressa ao nosso país para apresentar um álbum com poesia em língua portuguesa que gravou com o fadista Ricardo Ribeiro e que sairá, como sempre através da editora alemã Enja, já no próximo mês de Maio. No My Space do músico é possível escutar um dos temas – “Jogo da Vida” e verificar que ambos vão actuar juntos em Lisboa (a 2 de Agosto) e nas Caldas da Rainha (a 4 de Outubro).

Quando é que conheceu Ricardo Ribeiro com quem acabou de gravar um disco? Como é que viu que tinha algo em comum com ele.

– Conhecemo-nos no projecto que tivemos em conjunto no Teatro Nacional São João, no Porto. O Director [do TNSJ] Ricardo Pais, perguntou-me, há muitos anos atrás, se gostava de trabalhar com músicos do fado. Sempre gostei do fado. Sempre houve semelhanças, um contexto emocional próximo, entre o fado e a música árabe. Fiquei interessado mas o projecto era um pouco louco e por isso fui experimentando outras coisas. Passaram-se alguns anos. Até que ouvi o Ricardo Ribeiro cantar “Cabelos Brancos”. Gostei da forma como ele interagia com os músicos que o acompanhavam. Pensámos que deveríamos trabalhar juntos. Ver como era. Trouxe-lhe alguma música… ele corrige-me o português… há algumas coisas que não funcionam e tenho de procurar outras soluções. Mas estamos a trabalhar juntos e isso é muito natural. Era uma coisa que procurava há muito na minha música. Não há forma de nos relacionarmos com outra cultura sem que o processo seja natural.

Qual é para si o aspecto mais interessante da cultura portuguesa?

Gosto do estilo de vida e de como se vive aqui. Lembra-me muito o Líbano. Sempre fui assim. Relativamente à música, como eu disse, há a relação entre a “saudade” e taraab”. Não podemos traduzir ambas as palavras, temos de as sentir. Relativamente aos músicos com quem tenho trabalhado, muitas vezes as pessoas podem dizer que é interessante o diálogo entre o piano e o alaúde, que é interessante como o fado interage com a música árabe. Não. É o Ricardo que interage com a minha música. É o Joachim que trabalha comigo. Não é uma questão de misturar culturas. Nós temos de ter portas entre as paredes que existem sempre entre as culturas. Não temos de saltar o muro, não podemos ficar em ambos os lados, mas há sempre portas pelas quais entramos. Pessoas como o Joachim e o Ricardo são portas para outras culturas. Podemo-nos encontrar sem partir muros, todos mantém a sua cultura original e encontramos coisas novas para dizer.

Se alguém afirmar que a música de Rabih Abou-Khalil é «world music» corre o risco de ser redutor. A sua música é muito mais do que «world music».

Não temos uma definição para «world music». É uma tendência, não é um estilo. É sempre problemático quando falas sobre algo que não é um estilo. Teres alguém de outro país a tocar não significa nada. O jazz é um estilo. O fado e o rock são estilos. Mas «world music» é uma tendência, não é um estilo. Pode ser tudo e mais alguma coisa. É essa a única razão porque que penso que tenho um estilo e não um projecto com o qual toco uma única vez. E tenho feito isso antes de o termo «world music» se ter tornado popular.

Tem tido projectos tão diferentes com tantos músicos de distintas áreas. O que é o move a ir de um projecto para o outro? Os músicos?

É a individualidade do músico. Não é o estilo, não é o instrumento. É a personalidade musical. É isso que me interessa. É como escolher os meus amigos. Não me interessa se são altos, pequenos, gordos, magros. A questão é sempre a da personalidade. Se em vez disso pensar que preciso de um guitarrista ou de uma voz que vive perto de mim, isso não funciona. Se quiseres trabalhar com um projecto destes não podes pensar em termos regionais, não podes ter uma ideia e tentar concretizá-la. É a pessoa que oiço, que conheço, que me dá a ideia para novos projectos. Se me perguntares o que me atrai mais, digo-te que são músicos muito enraizados na sua tradição musical. Não quero quebrar a sua tradição. Quero trabalhar com eles tal como trabalho com a minha música, com a minha cultura árabe. Mas há-que esquecer isso, porque isso já existe.

Mas a sua música não é árabe.

Claro que não. Mas tem algo de árabe, naturalmente. Tal como o Ricardo, quando canta comigo, tem fado na sua música, mesmo que não esteja a cantar fado. Seria tonto se eu quisesse tocar fado. Outras pessoas fazem-no bem melhor.

Há vários tocadores de alaúde que são editados por editoras europeias e que misturam música árabe com jazz e outros estilos mais ocidentais. Casos do tunisino Anouar Brahem, ou do marroquino Majid Bekkas. Acha que a forma como eles criam a sua música é semelhante à sua?

É difícil saber como as pessoas pensam acerca da música. Quando as pessoas me pedem uma opinião sobre determinado tocador de alaúde, para ser honesto, este é dos instrumentos que oiço menos. Não me preocupo muito com ele. Penso que um músico deve transcender o seu instrumento. Gosto de ouvir um músico sem ouvir o seu instrumento. Por exemplo, pegando no concerto que vou apresentar hoje [na Culturgest], não gosto muito de piano. Mas gosto do Joachim e gosto de trabalhar com ele. Eu fiz um disco a solo com alaúde, não fiz um disco de alaúde. Sempre penso no alaúde como parte do processo de criação. Lá por que seja o meu instrumento e porque crie música a partir dele, não significa que o alaúde tenha de estar na frente. Gosto de fazer parte de um projecto. Mesmo se fui eu a criar os temas, penso que é nesse momento em que tenho de ter mais cuidado para não ser egocêntrico. De outra forma não precisamos de trabalhar com outros músicos de um certo calibre. Não podemos pensar nesses músicos como simples instrumentistas. Quando gravei um disco a solo, «Il Sospiro», gostei de ouvir alguém dizer que não ouvia alaúde, ouvia melodias, canções. Penso que é isso que procuro em cada músico. Tocar ou cantar de uma forma em que ninguém saiba o que estás a tocar ou a pensar.

Qual a qualidade que aprecia mais em Joachim Khun? A forma como ele improvisa?

Ele é um músico muito intuitivo. Quando actuamos juntos, ele nunca tenta tocar como um árabe. Isso nunca resultaria. Há qualquer coisa na sua personalidade, no seu entendimento musical que funciona comigo. E há algo que eu encontrei de forma surpreendente: o piano é um instrumento de harmonias.

Você é mais rítmico?

Rítmico e melódico. A Música ocidental é mais harmonias e melodias. Menos melodias do que harmonias tornou-se no centro de tudo. Mas o que me surpreende com o Joachim é que com a minha estranha forma de tocar (não toco como um músico normal, tenho o meu pensamento, o meu estilo e o meu método de trabalho), nós improvisamos. Quando parto para algum lado, o Joachim está lá, mesmo antes de eu lá ter chegado. Acho que é a coisa mais maravilhosa que se pode crer de um músico com quem trabalhamos.

Este álbum, “Journey To A Center Of An Egg” é dos álbuns menos árabes que criou. Será que isso se deve ao facto de terem sido três músicos a compor os temas?

Sim, foi uma colaboração. Para mim foi uma experiência interessante colaborar com alguém do mesmo nível. Até certo ponto, libertou-me. Tenho o meu próprio estilo quando componho. Foi estar numa situação com músicos que tinham muito para dizer de uma forma diferente da minha. E trabalho de uma certa forma. Somos músicos diferentes, todos nós vimos de mundos distintos. Foi interessante para nós encontrarmo-nos. É uma situação pouco comum. Para mim, foi essa a minha maior motivação para trabalhar em trio. Nunca me importei muito se a minha música era árabe ou não. Tento não viver entre culturas mas sim dentro delas. Quando vou a algum sítio tento captar a essência, o feeling do local. Talvez porque não podendo viver em casa [Beirute], encontro uma forma de me «sentir em casa» a qualquer sítio que vá. Quanto mais compreenderes um povo e a sua cultura mais te «sentes em casa». Tento viver esses momentos e é claro que eles reflectem-se na minha música.

Será que o alaúde é uma extensão de si? Dos seus braços, mãos e dedos?

Sim. São os meus dedos. É como dizerem-me para tocar com outras mãos. Tocar alaúde é a primeira coisa que faço de manhã quando acordo. O alaúde está sempre perto de mim porque é também a última coisa que faço quando adormeço.

No entanto, também teve uma formação clássica de flauta. Porque é que não a toca nos seus discos?

Bom. A flauta é um instrumento de vento, que me obriga a tocar e pensar na música de forma diferente. Aprendi a respirar, a construir frases musicais. O alaúde sempre foi o instrumento que esteve mais perto de mim.

Já afirmou em entrevistas que a sua música é sensual. Isso é verdade?

Sensual tem a ver com os cinco sentidos. Tem de te dar alguma emoção. Mas é difícil para mim dizer se sou ou não sensual. É algo que vem de fora. Espero sê-lo. É isso que quero que a minha música seja. É essa a forma como oiço música. A música que não tem esse lado sensual não me faz sonhar, não me provoca outros sentidos além do auditivo. Ouvir é fácil, mas tens de sentir a música depois a ouvires, para que esta seja sensual. Tem de te tocar. Em mais do que um sentido. Se vires um quadro com o mar pintado tens de cheirar a maresia. Os teus sentidos têm de ser provocados em conjunto para te dar uma nova sensação. É este o lado emocional da música. A música é uma arte.

É por isso que a sua música é tão cheia de dinâmicas, de altos e baixos, de momentos de tensão seguidos de momentos tranquilos.

Temos de trabalhar com todos os elementos que temos à disposição. Com o conceito de «Tensão e relaxamento». Penso que não há comunicação possível se não houver «Tensão e relaxamento». Só tensão é horrível. O trabalho com a «Tensão e relaxamento», com o uso de ambos os elementos no momento certo são as coisas que criam a arte, seja música, ou pintura.

Se não tivesse ido viver para a Alemanha no final dos anos 70 será que pensaria e criaria a sua música da mesma forma?

É sempre algo difícil de explicar. Poderia ter sido um jogador de basquete se tivesse dois metros e meio. Compreendo a sua pergunta. Sempre vivemos como uma família muito cosmopolita. A minha mãe ouvia Frank Sinatra, o meu pai gostava de música árabe e não só. Tínhamos um rádio de onda curta e ouvíamos sempre música chinesa, persa. Ouvi muita música diversificada quando era criança. Dois dos primeiros discos que comprei ao mesmo tempo foram obras de Frank Zappa e de Thelenious Monk. Não tinha ideia do que era. Apenas comprei os discos porque gostei dos nomes. Isso ajudou-me a compreender o pensamento ocidental, quando cheguei à Europa. Há uma enorme beleza em aprender imensas coisas em cada cultura. Não há culturas melhores do que outras. Há sempre algo a aprender. Há uma enorme riqueza que podes atingir se ouvires música japonesa longe do fado… vejo japoneses chorar tal como os portugueses quando ouvem fado. Podes imaginar a riqueza do teu estado emocional se conseguires chorar como um português e como um japonês?

Voltando ao seu projecto com o Ricardo Ribeiro, o que é que podemos esperar do vosso encontro?

É um projecto da alma do coração. Se quiser fazer um projecto da minha mente, poderia fazê-lo mas não teria a paixão da ligação pessoal. O meu projecto resulta com o Ricardo, mas não resulta com outro fadista.

Mas chegou a trabalhar com o Camané. Nunca pensou gravar um álbum em conjunto?

Falámos nisso. A música do Camané é muito pessoal. O que não é mau. Não estou a fazer uma crítica. Há grandes músicos que aprecio muito, respeitamo-nos mutuamente, mas não creio que fizéssemos o melhor trabalho juntos. É diferente quando nos encontramos e começamos a escrever logo nos primeiros dez minutos e que podemos fazer algo em conjunto. É como bater na porta certa, dar o passo certo.

Conhece guitarristas de guitarra portuguesa? Não se vê a improvisar com um destes músicos?

Mais uma vez, não se trata uma questão do instrumento. Passa sempre pela forma como o músico pensa. Se o John Coltrane ou a Amália fossem vivos, não sei se conseguiria trabalhar com eles. Precisamos de mentes diferentes. Não consigo trabalhar com um cantor tradicional árabe. Já não é o meu mundo. Claro que o poderia fazer tecnicamente, racionalmente. Mas consigo fazer aquilo que faço melhor.

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