Afazeres particulares que me obrigaram a conduzir mais de quinhentos quilómetros neste dia, impediram-me de ver boa parte da actuação de Jimi Tenor com a Flat Earth Society. Do pouco a que tive a sorte de presenciar, deu facilmente para notar que este foi um dos espectáculos de maior criatividade com músicas «para filmes que nunca existiram». Uma grande orquestra de dezena e meia de músicos liderada pelo compositor belga e clarinetista Peter Vermeersch, acompanhada pelo artesão sonoro finandês Jimi Tenor, atacaram free jazz, funk, metal «naked cityano», soul, exotica, lounge. Tudo misturado num «shaker» que produzia «cocktails» sonoros que poderiam muito bem servir de banda sonora para filmes de acção influenciados pela “blaxploitation” dos anos 70. Má sorte ter visto pouco mais de 20 minutos de «caos» organizado em cima do palco.
Se a Jimi Tenor e a FES nos ofereceram toda a ambiência sonora da vivência mundana, algo «kitch», algo cartoon de banda desenhada dos «ghettos» nova-iorquinos, os Last Poets dos veteranos Abiodun Oyewole e Umar Bin Hassan trouxeram consigo uma raiva, um estado de espírito semelhante ao de “Political Blues” da World Saxophone Qartet de David Murray que pairou no castelo de Sines em 2007. Afastado o saxofonista norte-americano do cartaz deste ano, coube aos Last Poets a tarefa de apresentar, provavelmente, o espectáculo mais denso e difícil de digerir de todo o festival. É inegável o papel que estes senhores têm na história da música que nasceu no Bronx, na forma como abriram caminho para a ascenção de nomes como Afrika Bambaataa (de “Planet Rock”) ou Dj Grandmaster Flash (de “White Lines”). Os Last Poets soltaram os espíritos do «black power», das injustiças sociais que afecta (cada vez mais) a comunidade negra dos Estados Unidos. Ao fim de quarenta anos, o discurso dos Last Poets mantém-se actual. As suas «palavras faladas» são como balas de borracha (aleijam mas não causam baixas) dirigidas à classe política que continua a ignorar os direitos civis dos negros. Em palco, Oyewole e Hassan mantêm toda a aura de figuras lendárias da história da música negra norte-americana. Foi pena que músicos com a qualidade do baixista Jamaaladeen Tacuma ou do percussionista Don Babatunde pouco tenham saído de uma métrica soul-jazz-funk dos anos 70 e não tenham convocado para o terreiro de Porto Covo outros espíritos mais ancestrais (como os yoruba).
Depois da tensão e da fúria negra, a descompressão napolitana do saxofonista italiano Enzo Avitabile que trouxe uma orquestra vistosa de tocadores de barris e toneis (a Bottari) para embriagar grande parte da assistência. Apesar de ter cumprido essa função, de ter incendiado o recinto de Porto Covo foi, sem sombra de dúvida, o espectáculo mais fraco até ao momento. As canções envoltas num misto de funk, jazz e tarantela são feitas a martelo, excessivamente pop-pastilha-elástica, sem aquele delírio convulsivo, sem aquela dança frenética das tarantelas e das pizzicas. E os Bottari estão mais ali para encher o olho do que para dar intensidade e outro poderio percussivo à música de Enzo.