Depois da fase “Pulsar” e do encontro da concertina com outros instrumentos e diversas vozes, os Danças Ocultas voltam a concentrar toda a sua criatividade e experimentação à volta dos instrumentos de origem. Em Porto Covo, durante a décima edição do FMM de Sines, estrearam um novo espectáculo multimédia. Aqui, o quarteto interage em palco com «elementos gráficos e pequenos filmes que estão em loops que avançam a velocidades diferentes conforme há mais ou menos informação musical». Artur Fernandes conversou com as Crónicas da Terra, na recepção do hotel Sinerama de Sines (onde os quatro músicos ficaram alojados), por volta das 3h da manhã, antes do colectivo visionar o vídeo da sua actuação e tirar os devidos apontamentos no bloco de notas, descansar um pouco e abalar para Águeda, cerca das 8h da manhã.
– Acabaram de dar um espectáculo em que estrearam uma componente multimédia. Até que ponto um colectivo cuja alguma da música que produz tem servido de banda sonora para cinema e dança, dá importância a esta inovação?
Com a nossa experiência da participação em suporte para banda sonora ou coreografias, chamou-nos a atenção para uma importância da concretização de um espectáculo com a importância das diversas componentes. Isto por um lado. Por outro lado, o termos consciência de tocarmos música instrumental que grande parte do público, não estando habituado a ouvir música deste tipo, quando está a assistir a um concerto, por norma, repousa o olhar no vocalista. Esta questão do repouso do olhar é extremamente importante quando se está a ver um espectáculo. Onde é que nos queremos que as pessoas repousem o olhar? Efectivamente, como estamos sentados, não nos podemos movimentar muito. Isso nasce da preocupação de termos de arranjar aqui qualquer coisa aonde o público possa repousar o olhar, mas que não seja o mais importante. Isto é um ponto de partida.
Esta situação surgiu pelo repto que o Carlos Seixas nos lançou como uma espécie de carta branca para prepararmos o espectáculo que entendêssemos para o décimo aniversário do FMM de Sines. Depois de um processo que resulta do “Pulsar” em que andámos a tocar com dois ou três convidados, quisemos dar o salto: não pensar em convidados e pensar mais neste lado multimédia. O contacto com o Luís Girão já existia pelo facto do Filipe Ricardo ter estado, durante o último ano, a fazer alguns trabalhos na Casa da Música. Entendemos então que a estreia deste espectáculo era uma proposta interessante para trazer a Sines. A disposição em palco é a tradicional: pequena meia-lua dos quatro músicos.
– Como é que essa projecção multimédia é feita?
A Projecção multimédia é feita resultando da interacção musical das quatro diferentes prestações que provocam reacções diferentes aos elementos gráficos. Tanto podem ser abstractos, como pequenos filmes que estão em loops e que avançam a velocidades diferentes conforme há mais ou menos informação musical. Muitas notas ou poucas notas, velocidades diferentes para o vídeo.
– Com esta projecção percebemos mais facilmente como o grupo funciona. Há um grande dinamismo na forma como os diferentes músicos tocam, param, esperam para voltar a entrar. Tudo feito de uma forma muito instintiva…
…ou funcionalmente para a música. Focas uma questão importante até porque há esse objectivo fundamental da parte do Luís Girão. Ele analisou as nossas partituras – tem formação musical – e descobriu isso que estás a referir. E disse « -Nós vamos então aqui ajudar as pessoas a perceberem como é que funciona a informação da parte de cada um». As pessoas, assim, vão mais claramente perceber quem é que está a tocar. Quem não está. O que é que cada um está a fazer. Isto, sem ser muito claro, mas implícito. Até porque como tocamos instrumentos iguais, as pessoas poderão ter alguma dificuldade em perceber de onde é que está a vir cada som.
– Muitas vezes, é mesmo difícil perceber se estás ou não a tocar. Porque, tirando a concertina baixo, os instrumentos são muito semelhantes…
– Nesse sentido é também muito importante tocar em exclusividade com o mesmo técnico de som porque ele já nos conhece. Por vezes, alguns promotores de espectáculos fazem-nos propostas para tocarmos em determinado sítio em que dizem que já têm técnico de som. Mas é muito complicado para um técnico que não conhece o nosso trabalho saber qual é o instrumento que está a tocar. Neste sentido, esta estreia multimédia é um ponto de partida. Vamos agora calmamente ver como resultou e tentar explorar outro tipo de materiais. Para já, pelas reacções que tivemos, parece que a aposta está ganha.
– Depois do “Pulsar” em que passam de uma formação instrumental para um projecto com algumas vozes, algumas canções, porquê o regresso à formação original? Parece-me que o vosso próximo disco será também estritamente instrumental. Porquê?
– No “Pulsar” houve uma clara aposta dentro do grupo de provar que este é um projecto muito alternativo, mas a música que fazemos permite juntar um bandolim, uma voz, um clarinente, um contrabaixo. Foi uma tentativa de demonstrar o cosmopolitismo da nossa música. Tendo ficado isso provado, pensamos nós, não sentimos necessidade de voltar a repetir fórmulas. Por outro lado, durante os últimos dois anos, começámos a fazer, em termos de estratégia de ensaio, aquecimentos em que pegávamos num ritmo fixo e íamos improvisando. Ou, por exemplo, íamos improvisando por cima de um único acorde sempre constante. Este processo, lenta e gradualmente e sem darmos por isso, começou a levar-nos para uma estética muito próxima do que é a música africana: a de encontrar o êxtase pela repetição. Isto foi-nos moldando para um repertório que está aí a vir e que hoje já apresentámos algumas coisas, que é precisamente a obstinação de determinados elementos. Começámos a perceber que esse tipo de estética não precisava de músicos convidados. Lenta e gradualmente, chegámos aqui. São das tais coisas que nunca notamos no momento das viragens. Só mais à frente, olhando para trás, é que notamos que isto está a acontecer. Sentimos que era um caminho interessante. Começámos a testar estas músicas em concertos e começámos a verificar que mais facilmente as pessoas entravam no «filme», na «viagem». Inclusivamente, descobrimos uma palavra árabe que quer dizer a elevação espiritual com que o público fica quando assiste a um espectáculo, a uma recitação poética: tarab. Que é também o nome de um dos discos do Rabih Abou-Khalil. Sentimos que, com este tipo de abordagem estética pela repetição, mais facilmente levamos as pessoas connosco, na nossa viagem.
– Sentiram uma boa reacção do público em Porto Covo. Até tiveram direito a «encore». Isso é o reflexo de que as pessoas entraram na «viagem».
– Sim. Houve dois momentos muito interessantes. Um, mal entrámos em palco, ter ouvido uma pessoa a assobiar a “Queda de Água”. Pode não querer dizer nada, mas também pode querer dizer fidelização de público. Outro momento, muito próximo do final, nas duas últimas músicas [antes da Dança II] quando a luz de palco abriu um pouco mais e permitiu-nos ver o rosto das pessoas nas primeiras filas. De repente, só vejo uma quantidade de pessoas de olhos fechados a balançarem o corpo, nitidamente envoltos na música. Nesse sentido, sim.
– Continua a correr-vos nas veias a música tradicional, mas vão sempre muito além disso. A vossa música vive de constantes dinâmicas, de altos e baixos, de caos (sobretudo na viragam da “La Danse Idèalle” para a “Dança II”) e momentos muito repousantes…
Nesse aspecto, há aqui pormenores interessantes. O contraste de existe na nossa formação. O termos nascido no seio da música folclórica, em contraste com a formação de música clássica que tivemos no conservatório. Essa coisa que referiste dos contrastes vem da música clássica. Basta ouvirmos uma sinfonia de Beethoven e percebemos estes contrastes bruscos de intensidade. Na música tradicional não acontece muito. Por outro lado, embora de início a maior parte das composições tenham sido minhas, cada vez mais estamos a compor em grupo, em oficina. Cada um de nós tem vínculos de intensidade diferente tanto ao folclore como à música clássica. Isto é extremamente importante quando o objectivo é criar um objecto que seja de um bom gosto refinado. Almejamos isso. Se há um elemento que não gosta de determinada parte quando estamos a compor, todos os outros esforçam-se por encontrar uma solução ainda melhor que satisfaça ambos. Neste aspecto, este projecto é muito diferente daquele tipo de banda em que há um líder e músicos convidados. Neste caso, ou é um génio e consegue manter uma bitola estética muito equilibrada, ou então é difícil obter esse equilíbrio de qualidade. O que nós fomos descobrindo é que, com esta forma de trabalhar, conseguimos chegar a um equilíbrio, a uma coerência de estilo bastante forte.
– Como é que um projecto que já tem tantos anos e que continua com o mesmo propósito do início – o de criar um repertório para a concertina -ainda consegue voltar a criar um novo repertório e uma nova estética. Ainda há muita coisa por explorar na concertina?
– No princípio, antes das Danças Ocultas, diziam-me que a concertina era um instrumento muito limitado. Não. É limitado se quiseres compor uma sinfonia. Limitadas são as cabeças das pessoas. Nas Danças Ocultas preocupamo-nos com as potencialidades e não com as limitações. Se a cabeça humana não tem limites, respondendo à tua pergunta, esses limites não existem. Por mais absurdas que sejam, podem haver imensas novas propostas. Também não podemos deixar de perceber que, por outro lado, são aqueles quatro instrumentos e a sonoridade que as pessoas vão ouvir será sempre aquela.
– No início sentiram necessidade de construir a concertina-baixo. E agora? Voltaram a sentir necessidade de construir uma nova concertina?
– Em exagero podíamos até partir para uma manipulação digital do instrumento, com sons midi, ou através da nossa concertina a controlar outros instrumentos. A tecnologia está ainda muito por explorar. Para já, não queremos ir por aí. Mas, por exemplo, o nosso técnico de som debita pequenos efeitos, coisas muito subtis, que alteram o timbre dos instrumentos. Ou seja, a concertina do Francisco tem um som mais anasalado, parece um clarinete-baixo. Isto é um pouco forçado tecnicamente para distinguir-se da minha. Isto porque nós é fazemos os constantes jogos de contraponto. Mas sobre as possibilidades que para aí vêm e o que estivemos a discutir sobre a estética, antes do “Pulsar” e da actual repetição de motivos, a maior parte das pessoas nem se apercebem. Ou se se apercebem é muito tenuemente. Mas temos de continuar a procurar novas coisas e a informação da nossa parte tem de sair exagerada para que as pessoas entendam um pouco onde queremos chegar.
… ou então fazer o desenho da partitura com esta componente multimédia.
Sem dúvida. Para nós é que é extremamente importante a procura dos desafios, para nos sentirmos com mentalidade fresca e para não cairmos no lado menos bonito desta profissão que é «- vamos lá fazer mais um concerto». Nesse sentido, dentro de um conceito muito fechado de termos quatro instrumentos iguais, com suas as limitações (que temos consciência delas), temos de ir à procura das potencialidades e estar sempre à procura de novas situações. Chegámos, por exemplo, a experimentar música non-sense, de circo, a propósito de uma música que preparámos para o Ballet Gulbenkian. Andámos durante dois meses a explorar isso. Vimos que não era por aí. Mas andámos imenso tempo em ensaios a explorar alternativas, por causa do tal filtro alargado. Mas isso é gratificante. Podemos deitar material fora, mas esse processo, essa passagem, permite-nos chegar a um trabalho mais sustentado.
(c) fotos: Mário Pires | CM Sines
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