Justin Adams actuou recentemente no FMM de Sines, ao lado do griot gambiano Juldeh Camara. Ambos vieram apresentar um lote de canções de «blues» do deserto integradas no bombástico álbum “Soul Science” (edição Wayward, distribuição Megamúsica). Na terra de Vasco da Gama, conversámos com um músico que carrega às costas mais de trinta anos de história do pop / rock britânico. Do punk e do pós-punk, aos Invaders of the Earth de Jah Wobble; de autor solitário da obra “Desert Road” a membro dos Strange Sensation de Robert Plant e a produtor dos Tinariwen.
Como é que um guitarrista que passa pelo punk se integra nos Invaders of The Earth de Jah Wobble? Em que, apesar de fazerem um som mais global com música africana, árabe e asiática que gostava, era muito mais marcada pelas linhas de baixo do que pelos riffs de guitarra?
Como referiu, nessa altura tinha ideias de fazer a música global. Tinha um saz turco e uma darabuka. Ouvia Fela Kuti, Youssou N’Dour, Ali Farka Touré, muito dub e reggae, jazz de Don Cherry e de Ornette Coleman, música árabe de Oum Kalthoum. Tudo isto era muito excitante. Se começasse a tocar música árabe com outros músicos, eles achavam estranho, mas o Jah Wobble compreendia aquilo que queria fazer. Gostava muito de dub, do «feeling» dos ritmos de transe africanos. Convidaram-nos para participar no WOMAD e, a partir daí, sentimos que fazíamos parte deste universo. Tocámos com o Nusrat Fateh Ali Khan, com o Toumani Diabaté quando ainda era um miúdo… o facto de o baixo estar à frente da guitarra… eu não queria ser um Eric Clapton, um «guitar hero», estava mais interessado na forma como o Steve Crooper, ou os guitarristas do James Brown e do Fela Kuti usavam este instrumento. Estava muito satisfeito em pertencer àquela máquina de fazer ritmos.
– Viveu no Egipto e na Jordânia. Será que isso contribuiu para a forma mais global como pensa e sente a música? No interesse pela música árabe?
Sem dúvida. Quando andei na escola, na Jordânia, falava inglês, mas para mim era natural ouvir a língua árabe.
– Também tocou também com os franceses Lo’Jo que, além de músicos nómadas, são os organizadores do Festival do Deserto em Essakane (Mali). O que pensa do facto de actualmente haver vários músicos europeus a fazerem música global, influenciada por ritmos árabes e africanos?
Por muitas razões. Como músico que vivi a era punk, olhei para um período fértil do pós-punk, entre o final dos anos 70 e o início dos anos 90. Vi grupos como os Talking Heads ou os Clash a desenvolverem-se durante três ou quatro discos. Os Talking Heads, de início, tocavam uma música muito «branca». Aos poucos começaram a desenvolver e a perceber mais de ritmos, começaram a abrir, a olhar para África, para Fela Kuti. Os Clash abertos ao reggae, rockabilly, ao country-western, ao rap. Foi um período muito fértil a olhar para novas linguagens na música e sempre a tentar evitar os velhos clichés do rock. Outra razão, prende-se com o facto de ter havido cada vez mais imigração. Em inglaterra não tínhamos qualquer contacto com a música da África francófona até ao início dos anos 90. Foi nessa altura que começámos a ouvir músicos argelinos, senegaleses, malianos que não ouvíamos antes. As grandes estrelas como Khaled, ou o Youssou N’Dour, até mesmo o Thomas Mapfumo, começaram nessa altura a tocar em Inglaterra.
– Será que o Festival do Deserto influenciou a criação do seu disco «Desert Road»?
Bom. Fiz esse disco antes de participar no Festival do Deserto. O que realmente me inspirou a fazer esse disco, foi a minha primeira viagem que fiz a Bamako (Mali). Aí, comprei um n’goni. Toco o instrumento, mas não o faço como o Bassekou Kouyaté (risos). Para mim o som é mágico. Faz uma ligação entre o alaúde, o som da música marroquina do guimbri e o som do banjo e do blues. Inspirou-me para fazer alguns temas. Fiz com ele uma série de esboços durante três anos, até à altura em que os utilizei para definir o padrão do disco. Nessa altura ainda não tinha ido ao deserto do Sara, mas sonhava com isso.
– Neste seu último álbum que gravou com o griot gambiano Juldeh Camara, “Soul Science”, toca banjo de um modo mais enraizado nos blues africanos e não no bluegrass que estamos habituados a ouvir nos Estados unidos…
De facto. Em Marrocos e na Argélia tocam banjo desta forma. Se formos a olhar para a história deste instrumento tem o n’goni…
Sim, o Bassekou Kouyaté toca n’goni a soar a banjo das montanhas Apalaches…
Sim. O banjo tem origem na África Ocidental e no N’goni. Nas ilustrações dos primórdios de Nova Orleães, na «Congo Square», existem desenhos de tocadores de n’goni. Passaram a construir o instrumento com um cilindro em vez da pele de cabra. Depois, os irlandeses e os escoceses das Montanhas Apalaches, começaram a tocar música celta com este instrumento africano. De seguida, as gentes do norte de África adaptaram-no. Até mesmo os chineses o fizeram. Porque já existia este tipo de «alaúde» na Ásia Central, antes de ter surgido em África. Tem feito uma viagem circular pelo mundo.
– O “Soul Science” é um disco que foi provocado pelo Juldeh Camara que, assim que ouviu o seu anterior disco – “Desert Road” – quis trabalhar consigo, não é verdade?
Sim, foi isso.
– O que é ele viu na sua música para querer trabalhar consigo?
O que ele me disse é que ficou muito surpreendido quando soube que eu era um inglês de pele branca, depois de ter ouvido o disco. O que me distingue de outros músicos britânicos é que a minha arquitectura rítmica e de escalas é muito africana. Também uso coisas provenientes do dub, do rock pesado, mas a estrutura da minha música é muito africana. É uma música aberta para um músico mais tradicional africano poder tocar, porque não uso estruturas harmónicas da música clássica ocidental.
– Música pentatónica?
Mais pentatónica, sim.
– É por isso que Hukwe Zawose, o malogrado músico da Tanzania, afirmava que você era um músico tradicional africano?
Sim. Ele dizia gostar da música porque soava-lhe a música tradicional africana. É óbvio que a minha música não é tradicional. É muito impura, mas tem esta abertura. O que impede um músico desta natureza de trabalhar com um ocidental, é a imposição da estrutura. A minha música não impõe nenhuma estrutura ocidental. Se tocarmos em modo de parada e resposta e mantivermos o ritmo, toda a gente entra no diálogo.
– Foi esta sua qualidade de absorver a cultura africana e árabe que o Robert Plant observou em si para o convidar a integrar os Strange Sensation?
Sim. O nosso ponto de contacto foi mais a música de Marrocos e do Egipto. Ele perguntou ao percussionista que tocava com os Transglobal Underground se conhecia um guitarrista que estivesse a par deste tipo de música e ele disse-lhe que tinha de entrar em contacto comigo. Fiquei muito contente. Quando ele me ligou, disse-me para não tocar da mesma forma do Jimmy Page, mas para fazer o que já fazia no meu disco “Desert Road”. Fomos ao Festival do Deserto [de Essakane, Mali] juntos e foi muito inspirador para ambos.
– De forma contribuiu para o sucesso dos Tinariwen? Que papel desempenhou como produtor?
Sou um grande fã da música deles. Não queria alterá-la muito. Quando entrei no deserto, ouvi-os e adorei-os. Fui muito cuidadoso porque adoro guitarra e adoro ritmo e compreendo muitos dos seus pontos de referência. Já ouvia música tradicional tuaregue, que adoro. Gosto da música marroquina que eles também gostam, mas também conheço Muddy Waters e John Lee Hooker. Por isso, apenas sugeri pequenas alterações nas guitarras e na escolha do material.
– Escolheu os amplificadores e outro tipo de material para obter uma determinada sonoridade, certo?
Usámos amplificadores VOX AC30, Fender a válvulas. Também sugeri a escolha de ecos. Por vezes usavam «slapback delays». Inspirámo-nos na sonoridade dos primeiros discos de blues e no rock’n’roll. Não queria que soasse nem como «heavy rock», nem como Dire Straits. Queria um som moderno, rude, mas a soar a anos 50.
[em breve, neste espaço, entrevista com Juldeh Camara]
(c) Fotos: Mário Pires / CM Sines