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[entrevista] ALDINA DUARTE: o fado que estremece o corpo e agita a alma

aldina

ALDINA DUARTE, uma das vozes femininas mais intensas e profundas do fado, apresenta o seu segundo disco “Crua” numa mini-digressão de quatro datas em anfi-teatros, cujos espectáculos terão a direcção cénica de JORGE SILVA MELO (dos Artistas Unidos). A alma mais negra do fado tradicional será acompanhada à guitarra portuguesa por JOSÉ MANUEL NETO e à viola por CARLOS MANUEL PROENÇA.

Esta sexta-feira (dia 17), actua em na Culturgest em Lisboa, no domingo (dia 19) vai à Casa da Música no Porto. A 2 de Dezembro é um dos nomes que encerra o Sons em Trânsito que se realiza no Teatro Aveirense ( na cidade dos ovos moles). A 15 de Dezembro estará em Viseu, no Teatro Viriato.

Deixo-vos uma conversa realizada para o programa de rádio “Vozes da Terra Pura” que se pode escutar neste espaço.

Antes de se assumir como fadista profissional teve várias profissões. Ou várias actividades.

Vários Empregos.

Como é que chegou aquele ponto em que se assumiu como profissional da arte de cantar fado?

Como disse e muito bem, comecei por trabalhar no jornal o Século (que já não existe) como colaboradora e depois acabei por ficar na redacção. Dali passei para a redacção da Casa Cláudia. Depois fiz um curso na Rádio Comercial da Linha. A seguir, mudei radicalmente e fui para o Centro de Paralisia Cerebral ser monitora de um curso de Formação profissional para adultos durante três anos e meio. Paralelamente, comecei a cantar num projecto pop de Pedro Wilson.

Valdez e as Piranhas Douradas.

Mas não era bem um projecto pop. Era meio teatral, meio musical. Uma sátira.

Mas com música muito influenciada pelos ritmos quentes da América Latina.

A ideia era fazer uma caricatura das ditas músicas do mundo.

Tinham aquele tema “Rico cu”…

“Rico cu que ela tem” (risos). Eu era das Piranhas. Na altura em que sai do projecto, fui a uma casa de fados pela primeira vez. Fui porque o Jorge Silva Melo queria fazer um documentário com três fadistas: Beatriz da Conceição, Fernando Maurício e Celeste Rodrigues. Eu disse-lhe: “ – tenho alguma curiosidade em ir a uma casa de fados. É uma música que afinal é só nossa. Acho um bocado estranho nunca ter ido e não fazer ideia do que seja”. E fui. Tive a sorte de apanhar a cantar a um metro de distância a Beatriz da Conceição. Que é… como é que eu hei-de explicar-lhe… a nossa Billie Holiday. Para mim, a nível de qualidade, de originalidade enquanto representante de uma arte de tradicional musical e de tradição oral será o equivalente a uma Billie Holiday. Porque tem uma musicalidade rara, uma voz com um timbre único. Sou absolutamente fascinada pela arte da Beatriz da Conceição. E foi logo a primeira que eu oiço a cantar fado numa casa que tenho a impressão que já não existe. A partir dali tive uma espécie de tremor que não sei explicar e que nunca mais me desliguei.

É aquele tremor que às vezes também tenta transmitir a quem a escuta?

Eu procuro… isto é pretensioso aquilo que vou dizer, mas é verdade. Não me vou armar em falsa modesta. É o tremor que eu gostava de provocar a quem me ouvisse. Não é ao ponto de alguém se tornar fadista por causa de me ouvir cantar. A coisa que menos gosto é de pensar que alguém que me ouve é indiferente. Prefiro que não gostem mesmo nada.

Como é que sente, por exemplo, um português que percebe as letras e a sente a rasgar a carne e a ir até ao osso, tal como Adolfo Luxúria Canibal também rasgou a carne da perna até ao osso sem querer naquele concerto do Rock Rendez Vouz…

… de quem eu também sou fã…

… e um estrangeiro que não percebe as letras, mas que também poderá sentir o seu tremor. Há um sentir diferente das suas palavras.

Se eu fosse estrangeira e se me apaixonasse por esta música, acho que gostaria de aprender um pouco de português. Como também acho que vale a pena saber inglês suficiente para ouvir a Billie Holiday ou a Nina Simone. Há uma audição muito mais profunda. Agora é verdade que não sei quase nada de francês, oiço o Jacques Brel e emociono-me. Regresso lá sempre. Há um lado universal desta música e dos intérpretes. Acho que as preocupações de quem canta ou de quem escreve, acima de tudo de quem canta palavras, são comuns. Os grandes intérpretes cantam sempre o que não está bem. O que não está bem toca a todos.

O interpretar das palavras da Aldina, não é semelhante ao interpretar de outras cantoras de fado. Isso ficou muito vincado numa oportunidade que tive de a ver na Festa do Avante. Depois da Carla Pires.

Sim e antes da Mísia.

Tivemos uma Carla Pires cor-de-rosa e uma Aldina durona. Ali, o ambiente transformou-se por completo.

Eu canto o que não me encanta. O que não está bem. O que me revolta. Os meus ideais, as minhas convicções e de mais alguém, acho eu. Nós não estamos a viver num mundo muito agradável, pelo contrário. Quero cantar isso. Quero intervir de alguma maneira. Não tenho uma natureza de entertainer. Não tenho nada contra. Mas não tenho essa alegria nem esse lado lúdico para dar. O que tenho para dar é aquilo que acho onde consigo ir mais fundo e fazer melhor. A minha natureza é dura em muitos aspectos, é crua noutros e é muito convicta. Ainda hoje estava a falar com o Jorge Silva Melo sobre o trabalho que estamos a fazer agora para a Culturgest e eu estava a dizer-lhe entusiasticamente que quanto maior é a luta maior é a esperança e a coragem. É um bocadinho isto. Não sei se se poderá chamar dureza, porque a dureza para mim tem um risco. Procuro também não ser dura. Pode confundir-se com inflexibilidade e isso para mim é sinónimo de burrice. Por aí não gostaria de utilizar a palavra dura. Agora se dura for utilizada no sentido de determinada, lutadora, de denuncia do que não está bem e do que não é justo. Se é nesse sentido, há uma certa dureza em mim, naquilo que faço e naquilo que canto acima de tudo. Basta ouvir aquelas letras e ouvir aqueles ambientes musicais na sua grande parte na história que canto ao longo do concerto. Procuro cantar a coragem daqueles que a têm que às vezes não é a que eu tenho. Gosto de ser a voz das pessoas que ninguém conhece e que mantêm isto de pé. Alguém tem de andar a fazer coisas muito boas, senão isto caia, não é? Já tinha acabado.

Há pouco mencionei o Adolfo Luxúria Canibal de quem a Aldina se considera fã.

Desde gaiata.

Eu também associo a Aldina ao rock apesar de cantar o fado de forma tradicional, só com viola e guitarra portuguesa, sem inovações estéticas. Não se via num projecto rock?

Não. Mas vejo-me sempre com aqueles que eu admiro. Imagine que o Luxúria Canibal tinha uma ideia para eu cantar qualquer coisa que me fizesse sentido e que eu fosse capaz de cantar. Ai com certeza que aceitava. O Jorge Palma a mesma coisa. Não são muitos mas há uns quantos que sim. Quando canto, canto com os fadistas que admiro mas também canto com toda a música que oiço – oiço muito a chamada música alternativa – e sei que aprendo muito com aqueles cantores, com aquela ousadia artística.

O que é que faz com que seja fã do Aldolfo Luxúria Canibal ou do Jorge Palma? Em que momento é que sente dentro de si um clique que a torna cúmplice destes artistas?

Acho que eles agitam as mentalidades, acima de tudo. Isto é o que mais me atrai. Não se limitam a ser pessoas com talento musical e vozes especiais. Vão para além disso. Mudam as mentalidades. No tempo mudam mesmo. No caso do Jorge Palma há mais do que provas disso. Ele apanha a minha geração, apanha que vem lá atrás, a que está à frente. A mim mudou-me. Lembro-me de ter 15 anos e tornar-me uma pessoa diferente depois de ouvir o Jorge Palma.
Fui há pouco tempo ver uma das peças do Jorge Silva Melo que estão em cena, Stabat Mater, que é um monólogo com a Maria João Luís. Não fiquei igual. Já não estou a cantar como cantava. Aquela personagem passou a fazer parte daquilo que eu canto, da maneira como eu olho para pessoas que têm dramas semelhantes aqueles. Mudou o meu olhar em muitas coisas. É por aí que eu passo a admirar alguém pelo seu trabalho. É mesmo por aí.

[continua]

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