Reportagens

[reportagem SET’06; dia 2] As cidades, os mares e o peixe

Há uns anos atrás, Lisboa recebeu um festival da música dos portos inspirado na nossa relação com o mar. Acredito que, se alguém tivesse a ideia de criar um outro certame que unisse as qualidades musicais de músicos que vivem à beira-mar com as gastronómicas e lhe desse o nome de “festival do peixe e dos oceanos”, não teria problemas em criar um fortíssimo cartaz, com um orçamento baixo.

Isto é, se tivermos em conta o aspecto bizarro da contratação dos Klezmatics para o II Sons em Trânsito de 2003, em que a banda aceitou reduzir consideravelmente (para cerca de um terço) o cachet a partir do momento em que teve a garantia que se comia bom peixe em Aveiro.

Podemos ignorar vários séculos de história em comum do colonialismo português na Índia, desconhecer as contradições do rígido sistema de castas que Arundathy Roy tão bem caracteriza em “O Deus das Pequenas Coisas”, não entender a forma solene como hindus, sikhs e budistas põem diariamente em prática os seus ensinamentos religiosos, nem conseguir ter o empenho e rigidez na aprendizagem de um instrumento como a sítara indiana, em que se acorda às 3 ou 4 da manhã para praticar durante mais de 12 horas diárias. Contudo, há um (de vários) aspecto(s) que nos une. Aquele que DEBASHISH BHATTACHARYA frisou no espectáculo de ontem: tanto indianos como portugueses gostam muito de peixe.

Por muito que o peixe se exinga dos mares em 2050 e passêmos a degustar espécies criadas em viveiros de aquacultura, haverá sempre o Atlântico, o Índico e o Pacífico a fazer a ligação entre a nossa música e a deles. Não só porque as “ragas” que BATTACHARYA interpretou são, segundo o virtuoso guitarrista de várias “slides”, “como oceanos”, mas também porque a sua música é milenar, toca-nos enquanto povo que levou o cavaquinho para a Madeira e a Braguinha para o Havaii. Sobretudo as “ragas” para Anandi, um “slide” ukelele que é um dos três instrumentos de cordas (o mais pequeno) que Bhattacharya construiu e que tão bem toca no álbum “Calcutta Slide-Guitar”. Há ecos de música minhota, madeirense, havaiana, mas também da ilha japonesa de Okinawa. Como se BATTACHARYA,BOB BROZMAN, JÚLIO PEREIRA e TAKASHI HIRAYAZU habitassem um espaço comum. É através da “chaturangui”, guitarra “slide” de maiores dimensões e com 22 cordas e quatro tons adicionais, que música clássica indiana se aproxima mais do “delta blues” e do poder de fogo do BEN HARPER dos bons velhos tempos (dos dois primeiros álbuns), através de múltiplos solos de virtuosismo e intensidade rock que evoca o espírito rebelde de HENDRIX. Contudo, a sua música, a sua postura e a dos seus companheiros (SUBHASIS BHATTACHARJEE – Tablas e CHRISTIAN LEDOUX – tambura) mantêm os cânones da tradicão clássica indiana: o drone da tambura a servir de tapete para as arrancadas a várias velocidades das tablas e das “slides”, o respeito pelo som e os jogos com os silêncios, a postura de lótus dos músicos e forma respeitosa com que agradecem a benção de serem virtuosos instrumentistas, de terem efectuado um óptimo espectáculo, com um Teatro Aveirense lotado e rendido a aplaudi-los de pé.

cidades de KEPA

Confesso que não sou muito admirador da forma como certos projectos da folk oriunda das várias regiões de Espanha reduzem ao mínimo e indispensável o “exotismo” da sua música mais enraizada e dos instrumentos mais típicos, em detrimento de uma formação mais simples, mais universal, mais globalizada, mais pop – guitarra, bateria e baixo – que vá conquistando outras audiências que não estão ainda preparadas para a folk pura e dura. É assim com a galega SUSANA SEIVANE, com o asturiano XUACU AMIEVA e com o basco KEPA JUNKERA. Nem MANUEL LUNA nem JUAN MARI BELTRAN (com propostas musicalmente muito mais ricas) tocam com tanta regularidade nem têm tanta assistência como estes músicos. Mas esta é também a versão portátil, reduzida ao minimo formato que permite mais mobilidade. Seria impossível KEPA oferecer-nos todo o aparato registado no álbum ao vivo “K”.

Para além da omnipresente txalaparta, escuta-se muito pouco a alboka e a pandeireta, o que é pena. Quando os tocadores de txalaparta largam as tábuas e pegam nesses instrumentos, encontramos os melhores momentos em termos colectivos. Mais puristas, não tão pop. Mas um espectáculo deste basco vale não só pela forma com que o músico ataca a trikitixa, mas também pela capacidade de comunicar com o público, sem ter grande necessidade de se expressar verbalmente. A mímica comanda. Se perguntarem ao meu filho de quase seis anos qual o artista que ele gostou mais, ele diz que foi do KEPA. Se lhe perguntarem qual foi o melhor momento desse espectáculo, ele dirá que foi a parte em que batia uma, duas, dez palmas, ou nenhuma. Pode parecer piroso, aborrecido para quem continuar a deleitar-se com todo o virtuosismo do trixitixista voador, mas são estes momentos que criam maior empatia e a plateia que toma o primeiro contacto com o músico que acaba por ser seduzida e que compra os discos à saída.

A primeira meia-hora foi morna, insonsa, mas a partir do momento em que os tocadores de txalaparta tocaram percussão com tubos de metro e meio numa placa estendida no chão, KEPA transfigurou-se. Voltou a ser o músico das grandes arrancadas, do toque instintivo, de múltiplos e inesperados floreados. Há sempre mais alguma coisa num tema. Tanto “Bok Espok” como “Ataun” (um dos temas mais dancáveis de “Hiri”) ganham outra vivacidade inexistente nas versões gravadas em estúdio.

A viagem por várias cidades do mundo registada em “Hiri” – Buenos Aires, Napoli, Agadir, Tblisi, Kokkola, etc – não é tão perceptível ao vivo. Sente-se a falta dos inúmeros convidados que oferecem tonalidades mais marítimas e épicas, de ênfase “new-ageano” à moda de ENYA. Houve, por isso, neste espectáculo, mais do que a apresentação de um novo disco, um recordar permanente de “Bilbau 00:00h”. Apesar das opções estéticas sempre discutíveis, KEPA continua a ser um dos melhores (se não o melhor) executantes de concertina. A cidade do museu de Gugenheim deve-lhe uma estátua.

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8 Comments

  1. pá, não tenho nada para te contra-argumentar, concordo plenamente contigo.

    Todos os musicos virtuosos de géneros musicais difíceis se debatem com essa questão, ser purista e manter uma pequena mas fiel legião de fãs ou alargar a base, suavizando a sua música e fazendo macacadas que deliciam o publico.

    o Michael Nyman vai sempre arrastar mais gente que o Marc-Andre Hamlin, e essa é uma escolha que ambos fizeram.

    o Kepa, o Carlos Nuñez, o Hevia, todos eles fizeram a escolha deles e prestam um bom serviço à musica tradicional, acabar com o preconceito e fazer cada vez mais gente gostar deste tipo de música. Dificilmente alguém se tornará amante de musicas do mundo a ouvir os pigmeus de Baka logo de entrada.

  2. concordo plenamente com a tua opinião.

    o kepa tem uma eficácia a toda a prova para agarrar o público.

    é uma opção de muitas bandas que se movimentam nesta área. sobem o volume sonoro e sacrificam a parte mais tradicional e acústica da música.
    estratégia de sobrevivência…ou vontade de ter plateias na mão…ou falta de ideias…

  3. Olá Rui e Pedro,

    Acho que é mera estratégia de sobrevivência. Mas apesar de tudo não condeno o Kepa. Por cada dez ouvintes novos que ele conquista há sempre um ou dois que poderão vir a conhecer e a amar Juan Mari Beltran.

    Assim como o Núñez. Se ele contribuir para alargar o leque de ouvintes de música galega e se alguns desses ouvintes partirem à descoberta de outras propostas como a dos Berrogüetto, já é um dado bastante positivo.

  4. acho legítimo que ele o faça.
    para mim é apenas uma preferência por outro caminho que gostaria de ver explorado. por exemplo, adoro o disco dele com o júlio pereira.
    acho que aqui foi um encontro de sensibilidades musicais e não um híbrido world.
    outras das coisas que detesto: as colaborações com grandes nomes sem resultados criativos.

    pelo que leio não viste o primeiro par de concertos.

    gostei bastante do cristóbal repetto.
    uma presença forte cheia de sensualidade na voz afinadissíma.
    as interpretações dele são contidas e com um leve pendor tétrico nos gestos o que só reforça a expressividade dos temas. bem acompanhado. reportório antigo, mas com variações suficientes para cativar o interesse.

    só o conhecia da ligação ao projecto bajofondo tango club onde também participa o daniel melingo que é um dos meus preferidos e dele também, pois referiu-o no concerto como influência.

    o concerto do ludovivo com o sissoko foi razoável, tirando as pianadas delicodoces do ludovivo, nada do meu agrado. achei a kora muito tímida e receosa do piano. fez pouco mais que o acompanhamento do piano.
    o que eu queria era ouvi-la como no solo de entrada.

  5. Caro Luis Rei, concordo em absoluto.Foi um bom concerto. Sem dúvida. O Kepa mostra uma fase de evolução marcado por uma necessidade, cada vez maior, de desconstruir (sem as transformar realmente) as melodias tradicionais ao tocar em contratempos permanentes. Uma forma de inteligência musical a que os Berroguetto e tantos outros ja se submeteram e evitam, para mim o piroso, ou seja, enxurradas permanentes de virtuosismo tradicional…

  6. Olá Rui, não estive no primeiro dia mas já me fizeram o relatório. Cristobal muito bom, tango à moda antiga. E o Ballaké sufocado pelo Eunaudi. Coisa, aliás que já acontece no disco “Diario Mali”. mas não será por isso que o disco deixa de ser belíssimo. Mas poderia ser ainda melhor.

    Ainda o Kepa. Acho que esse disco com o Júlio Pereira, mais simples, mas com maior sensibilidade, acaba por ser talvez o melhor disco dele. Outro grande despique de concertina / cordas que aconselho vivamente: Riccardo Tesi / Patrick Vaillant. Mas lá está, quem é que os conhece? quem é que iria a um concerto deles com entradas pagas?

    Mas, sinceramente, gostava mesmo que o Kepa em vez de trazer 20 ou 30 convidados para fazer número, voltasse a gravar um disco só com um ou dois grandes intérpretes.

    Salamandrina, há virtuosismo sentido, de improviso e há virtuosismo de cagança para engatar gajas… Felizmente, o Kepa encontra-se na primeira hipótese.

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