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A geografia segundo Maria de Medeiros

Maria de Medeiros

Maria de Medeiros tem novo disco. Depois de gravar diversos «monstros» da MPB  que combateram a ditadura militar no Brasil, a actriz parisiense edita agora «Penínsulas & Continentes».

Há magia italiana de Nino Rota, genialidade de Zeca Afonso, mas também toda a uma diversidade musical e cultural cantada em português (de Portugal e do Brasil), italiano, kimbundo, castelhano, catalão, valenciano e inglês. Um disco que será apresentado hoje ao vivo em Lisboa (Cinema São Jorge) e amanhã em Vila Nova de Gaia (Auditório local).

No álbum anterior, «A Little More Blue»,  mergulha a fundo nos cantautores que combateram a ditadura militar no Brasil, com um certo propósito de «radiação» política e cultural. Será agora este seu novo álbum uma banda sonora «hedonista» da sua vivência multicultural?

Sim, tem a ver com isso. O lado hedonista virá talvez da alegria com que trabalhamos com este grupo de músicos de jazz tão fantásticos. Fizemos imensas viagens apresentando o primeiro disco. Embora eles não tivessem o gravado, participaram na «tournée» que passou pelas costas atlânticas dos dois lados. Estivémos no Brasil (no Rio de Janeiro e em São Paulo) e em Espanha, o que nos levou a ter contacto com a pluralidade linguística e cultural que aí existe. Estivemos também em Itália, em Angola, em Moçambique, etc. Todas essas viagens, de alguma forma, foram enriquecendo a nossa experiência musical. Houve vários encontros com músicos. Sempre gostámos de convidar artistas para tocarem connosco. Fomos alargando repertório, nomeadamente africano.

Quer dizer que esta digressão serviu como uma espécie de «esponja» que absorveu vivências, encontros, que acabaram por ser registados neste disco?

Exactamente. Muito importante neste álbum foi também o concerto da UNESCO por ocasião da minha nomeação enquanto artista pela paz porque aí quis realmente interpretar um repertório muito centrado na música portuguesa e dar um grande relevo aos autores portugueses, como o Zeca Afonso, o Sérgio Godinho, a Amélia Muge. Partir realmente da lusofonia. E abordar a lusofonia já é dar meia-volta ao mundo.

Será que pelo facto de haver um contingente brasileiro na sua banda (3 em 4 músicos) motivou que músicas como o «Homem Voltou» do Zeca Afonso adquirissem uma componente tropical, ou acha mesmo que a música do Zeca Afonso, que já tem muita africanidade, facilitou essa vossa abordagem mais equatorial?

Penso que o Zeca Afonso já é muito «esponja». Já é muito navegador. A sua música é cheia de referências e diálogos com os continentes que nós abordamos. Claro que ele tem muita influência africana, mas penso que ele está em diálogo directo com alguém como o Victor Jara. O «Paz Poeta e Pombas» é uma salsa, uma coisa muito latino-americana. Certamente que nós a empurrámos um bocadinho mais para este ambiente. Efectivamente, os músicos brasileiros sentiram o lado sambístico que poderia haver no «Homem Voltou».

Qual foi o elo de ligação entre todas estas canções cantadas em diversas línguas? São elas a banda sonora da sua vida?

Na verdade, há um lado de banda sonora da minha vida, porque também tenho estado a trabalhar com o cantor napolitano Mauro Gioia, que gravou um disco e faz um concerto sobre o Nino Rota, que tem viajado um pouco por todo o mundo e em que sou uma das cantoras convidadas. Mas, um pouco a analisar o que unia todas estas canções, dei-me conta da influência extraordinária das nossas penínsulas latinas da Europa (ibérica e itálica). O diálogo tão rico e tão antigo que existe entre as nossas penínsulas e os continentes até onde chegaram as navegações (América, África). Sempre tentei encontrar pontos em que as canções se respondem. Sei que hoje em dia ouvimos muitas vezes os álbuns pela internet e com isso perde-se a ordem inicial dos discos. Para mim, isso é muito importante. Este é um disco que começa com a “Dolce Vita” (aliás, o filme do Fellini faz agora cinquenta anos). É uma celebração da vida.  A única coisa que sabemos que temos (e que é a nossa prenda mais magnífica) é sabermos que estamos vivos. A partir daí, o disco vai-se adentrando em várias temáticas e, de alguma forma, todas as canções, por mais diferentes que se pareçam, têm um ponto que comunicam e que se respondem.

Aqui não haverá também um certo fio condutor político? O de combater a opressão contra as minorias étnicas, a defesa da diversidade linguística?

Esse é um dos aspectos nos quais o disco de alguma forma também foi marcado pelo contacto que tive com a UNESCO, que me alertou ainda mais para certos valores que é preciso continuar a defender: a paz, a comunicação, a defesa dos patrimónios intangíveis como as línguas. Mas também há um gosto pessoal. Sempre adorei línguas, a música que existe em cada língua. E as possibilidades dramáticas também que cada língua oferece.

Este disco é dominado pelo Nino Rota e pelo José Afonso. Depois há aqui uma série de pequenas «ilhas». Uma delas é a da Catalunha em que podemos escutar um importante grupo que esteve na origem da miscigenação da rumba catalã com a pop, rock e hip hop do início do século XXI  e que, curiosamente, construiu uma notável carreira com belíssimas canções escritas em castelhano: El Último de La Fila.

É verdade. Mas o El Último de la Fila foi das primeiras bandas que descobri ao tomar contacto com a Espanha. Lembro-me das minhas primeiras viagens de promoção a Espanha, por alturas do «Henry & June», em que falava em inglês. Hoje é a maior vergonha. Foi graças ao filme do Bigas Luna que comecei a trabalhar em espanhol e que fui descobrindo o país vizinho, que é um mundo. Um país extraordinário, justamente por toda a diversidade que contém. Nessa altura, estava muito na moda o El Último de la Fila e eu apaixonei-me pelo «A Jazmin», que é uma canção pouco conhecida deles. Não teve grande êxito, mas a meu ver, tem um swing extraordinário. É verdade que, dos artistas catalães, houve muitos que fizeram uma escolha legítima de não cantar na sua língua, ou de só o fazer às vezes, o que me parece perfeitamente legítimo. Eu também achei graça fazer uma homenagem a essa zona levantina e gravar uma canção em catalão e outra em  Valenciano.

Como parisiense não sente falta de repertório francês nos seus dois discos?

Não. É engraçado que, quando saiu o meu primeiro disco, «A Little More Blue», muita gente me perguntou se não sentia falta de repertório português. Sim, claro que sentia falta. Destas observações nasceu este novo disco. Agora, claro que sinto falta de repertório francês, mas já está previsto que um dos meus próximos projectos será dedicado à música francesa. Aliás, é um projecto que nasceu em Portugal com a Casa da Música, que me propôs para o dia 25 de Abril do ano passado a apresentação de um espectáculo sobre música francesa e Maio de 68, inserido no ciclo «Música e Revolução». Construí todo um repertório à volta dos grandes autores (Ferré, Brassens, Gainsbourg) mas com coisas muito pouco conhecidas deles. Tentei ver também quem seria, hoje em dia, o herdeiro de uma música francesa ao mesmo tempo de grande qualidade e com esta preocupação sobre a realidade actual. Então convidei o Stepháne Sanseverino que faz uma mistura de rock e jazz manouche. Apresentámos depois esse concerto em França e penso que esse repertório dará origem ao próximo disco.

Penso que não é grande adepta do centralismo cultural que se vive em França, da existência de uma só língua que se sobrepõe a todas as outras que existem nas diversas regiões. Também lhe interessam, em termos culturais, as outras Franças? A Gasconha, a Ocitânia, a Córsega, a Bretanha, etc?

O catalão é a única língua reconhecida à parte do francês. O meu pianista e chefe da banda, Pascal Salmon, é bretão, de Rennes. Tenho muito contacto com esta região e penso que há muita coisa que une os bretões aos portugueses, como as raízes celtas. Acho que a preservação do património linguístico e cultural é muito importante, mas é preciso ter cuidado para que a sua defesa não se torne num nacionalismo exacerbado que provoca as maiores confusões. Não é saudável para a Europa, que é um projecto magnífico de tentar encontrar uma união dentro da diversidade. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Há-que preservar mas há-que manter sempre o diálogo. Quanto mais línguas melhor.

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