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Mawaca: o som das pedras na Amazónia

Mawaca
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Acabaram de celebrar 15 anos de uma existência de profundo trabalho de arqueologia sonora nos quatro cantos do universo. Sete vozes femininas que a partir de São Paulo vasculham as pedras, as raízes e a alma da música cósmica intersectando culturas, cânticos que há partida pouco podem ter em comum. Depois de pegarem em modas finlandesas, japonesas, búlgaras e até mesmo portuguesas (como “As Sete Mulheres do Minho”), o grupo liderado pela pesquisadora e directora musical Magda Pucci (com quem conversámos) mergulhou na Amazónia profunda e gravou “Rupestres Sonoros – O Canto dos Povos da Floresta” (edição Ethos Musical, 2009). Disco que certamente enche de orgulho Marlui Miranda (que aqui também interpreta um canto de miração Huni Kuin Kaxinawá).

Esta semana Mawaca acabou de editar o DVD com o mesmo nome do último álbum (“Rupestres Sonoros – O Canto dos Povos da Floresta”) que inclui a combinação das sete vozes femininas com arranjos acústicos e electrónicos de Marcos Levy.

Nos próximos seis meses Mawaca irá levar este repertório indígena ao Acre, Rondónia e Amazónia através de um novo espectáculo “Cantos da Floresta” em que o septeto vocal interage com vários cantores indígenas. Resta-nos fazer figas para que possamos sentir a força cósmica destes cânticos rupestres da selva amazónica num festival nacional de Verão. Façamos figas!

CDT – Mawaca sempre se caracterizou por destapar as pedras e desenterrar as raízes das músicas dos quatro cantos do mundo. Sempre combinaram geografias aparentemente distintas – Japão com Finlândia, por exemplo. É pelo facto de irem à origem da música como alma do universo, com propriedades cósmicas, que as fronteiras geográficas para vocês deixam de fazer sentido?

Magda Pucci – Sim, para nós, as fronteiras geográficas não fazem o menor sentido, mesmo. Há conexões entre a música indígena brasileira com canções japonesas, assim como ritmos espanhóis com algumas células rítmicas brasileiras e até mesmo indianas! É possível fundir uma canção chinesa com uma toada de orixá, de origem africana, ou seja, se formos nos apegar às questões geográficas, estaríamos perdidos! O fraseado melódico-harmónico português impregnou nossa música popular brasileira de tal forma que fica bem fácil ligar uma melodia daí com um canto daqui, portanto a conexão é histórica e explica um ethos musical que temos em comum…

– É que, sendo este “Rupestres Sonoros” um disco que mais conceitual sobre a música indígena do Brasil, também ela evoca outros lugares, como, o Japão, África… será esta a música que remonta aos tempos em que havia um só continente (Pangeia)?

Sim, se você olha o mapa-mundi, é bem claro que éramos um único continente pois um complementa o outro. Então, pode ser que tenham ocorrido interações entre os povos asiáticos e os povos indígenas latino-americanos sim, mas em tempos muitíssimos remotos, não? Mas a música tem esse poder de deixar marcas profundas que são transmitidas pela tradição oral, e que revelam maneiras de pensar, de conceber o mundo de um determinado grupo de pessoas.  Quando canto um tema indígena daqui do Brasil, observo que o esforço que eu faço para cantar na língua do tronco tupi é quase o mesmo para cantar uma melodia japonesa, por exemplo. Fonologicamente, elas tem fortes semelhanças, isso só é possível compreender se você canta ou fala as duas línguas. A nasalidade presente na língua dos chineses tem muito a ver com a nasalidade de algumas línguas indígenas nossas também. Isso talvez se comprove nas pinturas rupestres que encontramos aqui e que revelam alguns aspectos que poderiam ser comparados e talvez concluir mais cientificamente essa ideia do único continente. Sim, em Rupestres Sonoros, realizamos uma Pangeia musical!


– Neste disco, criou música a partir de figuras aparentemente abstratas – imagens, símbolos de rituais registrados nas pinturas rupestres de cavernas brasileiras.  Estas eram músicas cerimoniais, de cura, de enamoramento… presumo que se for fazer um trabalho de antropologia em Tuva ou na Lapónia (terra de outros xamãs) irá encontrar pinturas semelhantes. A música que iria hipoteticamente criar nesses locais seria semelhante à de “Rupestres Sonoros”?

Os cantos xamânicos de alguns povos indígenas brasileiros se assemelham um pouco aos cantos tuvanos embora os tuvanos tenham desenvolvido essa técnica do canto difônico (harmônicos que produzem uma melodia agudíssima) que não temos aqui no Brasil, pelo menos até agora não tive notícias desse fenômeno! Mas a forma como esses curandeiros pensam, a maneira que se utilizam da palavra cantada, dos poderes evocatórios provocados pelas repetições de determinados sons, são bem semelhantes entre um lugar e outro. Pretendo desenvolver uma pesquisa sobre isso e no futuro, pois tenho uma paixão especial pela música tuvana. Nas imagens rupestres que encontrei há várias representações de xamãs, com cocares enormes ou com praiás (mantos com figuras geométricas, circulares) que têm semelhança com algumas imagens de povos asiáticos. Na Serra da Capivara no Piauí e em Monte  Alegre no Pará essas figuras são recorrentes e mostram a importância do papel desses curandeiros que cantavam, dançavam, usavam ervas para curar as pessoas.

– Este é trabalho de recriação da música indígena brasileira em que há uma forte preocupação em não soar a obra de recolha. Nesse aspecto o trabalho de arranjos instrumentais de Marcos Levy foi fundamental. Qual foi a vossa principal preocupação com a direcção artística? Manter intacta a riqueza e a pureza melódica e ritualística dos cânticos ao mesmo tempo que construíam uma base sonora que soasse a moderno, contemporâneo? Este conceito foi fundamental para chegar a um público mais vasto?

Sim, foi exatamente isso. Não mexemos nada na melodia nem na letra das canções indígenas, mas o tratamento dado aos temas é que foi bem diferenciado, no sentido que trazer essa música para os tempos atuais. Eu escrevi os arranjos acústicos e o Xuxa Levy acrescentou vários elementos eletrônicos, assim como sampleou sons de máquina de escrever, de garrafas, de latas, pias de cozinha que quando percutidas, soavam completamente estranhas à sonoridade acústica dos instrumentos do Mawaca. Esse movimento de aproximar os opostos, tecnologia + primitivo, tradicional + contemporâneo é algo presente na vida dos povos indígenas de hoje, que estão se adaptando cada vez mais à vida social do homem da cidade, do “homem branco”. Hoje, os índios têm um interesse em se conectar com o mundo, querer ser reconhecidos como cidadãos brasileiros com todos os direitos como votar, se candidatar a cargos públicos etc. Assim, esse contraste entre o moderno e o tradicional já não soa tão estapafúrdio para os nossos ouvidos. E assim, conseguimos ampliar o raio de ação dessa música, sempre resguardada aos estudos antropológicos, etnomusicólogos e alguns poucos interessados. A idéia é fazer que essa música seja ouvida por qualquer pessoa mesmo que ela não tenha nenhuma conexão ou interesse pelo universo indígena. Queria muito que, ao ouvir essa música, as pessoas se perguntassem de onde ela vinha e daí passariam a conhecer um pouco sobre os povos indígenas. A surpresa em gostar de algo que desconhecem pode ocasionar uma mudança na relação com os povos indígenas. Ouvindo essa música indígena entendo que ela pode soar interessante aos ouvidos contemporâneos. Eu acho que a musica indígena precisa ser mais conhecida principalmente pelas pessoas que acreditam que índio é um entrave para o desenvolvimento do país. Clarice Lispector dizia “gostar é uma forma de conhecer”, algo assim… Pois a beleza é que nos atrai, depois é que vem o interesse mais racional. E assim foi feito com essas canções indígenas em Rupestres Sonoros. Algumas podem ser comparadas a temas contemporâneos, pois não possuem o ethos tonal; e da forma como foram produzidas, isso fica mais saliente, pois não harmonizamos as melodias, mas buscamos explorar o máximo possível as sonoridades menos comuns ali presentes. De certa forma, tentamos abrir outras possibilidades para esses temas, embora algumas pessoas mais conservadoras tenham torcido o nariz ….
– Este disco contou com a colaboração de Marlui Miranda, grande pesquisadora da música indígena brasileira, que também gravou missas com índios. De que modo é que ela colaborou com o vosso trabalho? Apresentando-vos repertório que recolheu? Aproximando-vos dos índios com que já tinha trabalhado?

Marlui é uma cantora e pesquisadora única, que tem um trabalho maravilhoso que eu tenho a maior admiração e respeito. Foi ela que começou toda essa história de recolher temas indígenas e recriá-los no palco, com coral, orquestra, formações de câmara etc. Ela assistiu a um dos primeiros shows do Mawaca e foi falar comigo dizendo-se encantada com a proposta. Eu sabia que um dia iríamos cruzar nossos caminhos. Pura intuição. Um dia fomos convidadas para fazer um show de abertura de um evento chamado Amazonia.br, há uns 8 anos atrás e ela adorou a forma como explorávamos os sons das línguas. Dali em diante, fiquei com a idéia de me unir a ela para desenvolver algum projeto. Quando comecei o projeto Rupestres, eu já tinha levantado algumas canções de LPs antigos e gravações de campo de outros antropólogos como a Betty Mindlin. Mas quando ouvi Matsã Kawa dos Kaxinawá, imediatamente pensei na Marlui para ser a interprete desse canto de miração. Para mim, era um canto enigmático que eu não conseguia decifrar bem, mas que me agradava muito pela sonoridade semi-falada com uma rítmica rápida interessantíssima por conta do efeito alucinógeno causado pela bebida feita de cipó. Durante a gravação no estúdio, enquanto Marlui ia cantando, ela ia decifrando o sentido de algumas palavras que eram próprias dos rituais de tomar cipó, uma bebida alucinógena cujo intuito é transformar as pessoas profundamente. Foi um momento maravilhoso!


– No entanto o vosso trabalho é distinto do dela. Mawaca não apresenta shows com cantores indígenas integrados no projecto (como Marlui fazia). É importante para vocês enquanto projecto vocal feminino adaptar e interpretar em conjunto este repertório? É o facto de serem sempre vocês a cantar o reportório que vos distingue como projecto Mawaca?

No primeiro CD que Marlui produziu, o IHU, ela não cantava com os indígenas, não. Depois, é que começou a fazer isso por conta de uma demanda européia de querer os “índios de verdade”. Mas eu acho que no momento em que você pisa num palco para cantar um repertório tradicional, há uma descontextualização inevitável. Não é possível reproduzir um ritual comme il fault. Por isso, acredito que é mais interessante inventar outras formas de apresentar a música indígena, pois ela tem um outro papel na sociedade; nem a música e a dança realizadas nas tribos têm o sentido de “ser um espetáculo”, isto é, de ser mostrada para os outros, mas sim de reunir as pessoas para atividades de caráter espiritual, um tipo de coisa que não se consegue num teatro que tem um caráter profano, laico…

Mas como os indígenas estão mudando muito a mentalidade, estão mais abertos às colaborações, eles mesmos estão pedindo para se apresentar em teatros, pois estão percebendo que há uma beleza nos seus rituais que é apreciada por não indígenas.

Na abertura do Fórum Cultural em São Paulo, o Mawaca se apresentou com alguns indígenas Waujá do Xingu. A antropóloga que trabalhava com eles achava que não seria possível fazermos algo juntos. E fizemos! Mas precisei de muito jogo de cintura, porque sempre nos sentimos “impondo” regras que são características do mundo do espetáculo… e assim corremos o risco de cercear a liberdade deles quando temos que pisar num palco com hora para entrar, com duração determinada do show porque não dá para varar a noite toda, né?, o teatro tem que fechar! Deu certo, os Waujá tocavam  flautas enormes que tinham um som grave lindíssimo e sobre elas cantamos um tema dos índios Suruí que já era parte do nosso repertório. Eles gostaram da proposta e pediram para as cantoras dançarem com eles e até nos ensinaram os passos!

Acho que para realizar um espetáculo com os indígenas, o mais legal é conceber conjuntamente, não chegar com uma idéia pronta… Iremos fazer isso nos próximos meses no projeto Cantos da Floresta, que será patrocinado pela Petrobras. Faremos uma turnê por 6 diferentes cidades do Acre, Rondônia e Amazônia e iremos visitar alguns povos indígenas e desenvolver oficinas com eles para que possamos trocar idéias, conhecer mais de perto suas práticas musicais, ver como podemos recriar aquilo no palco com eles. A idéia é que possamos compartir momentos juntos e também deixá-los mostrar sua música como ela realmente é, mas sem recriar os rituais em palco.  Assim, poderemos criar um diálogo com eles em tempo real e também mostrar para as pessoas que moram próximas às reservas indígenas, que aqueles indígenas têm uma cultura a ser respeitada e que é possível o diálogo se houver uma interação real e interesse.

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2 Comments

  1. Olá Magali, vc não me conhece, sou Profº de música aqui em Minas Gerais, trabalho em escola pública, com crianças de 4º e 5° ano, adorei o trabalho de musica indígena aqui exposto, quero te perguntar, vc não disponibilizaria as letras do cd cantos da floresta, aqui em Baependi MG, os recursos são meios daquele jeito!!. Eu adorei ouvir algumas faixas na radio Uol via net, … me renponda se é possível ok!!
    Um Gde abraço com um sol maior te iluminando.
    ClóvisClóvis

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