José Paes de Lira, o Lirinha que foi líder do colectivo brasileiro Cordel do Fogo Encantado, que se estreou em palcos portugueses no FMM de 2006, regressou a Sines para encerrar a 14ª edição do Festival de Músicas do Mundo. É na madrugada deste sábado para domingo, às 2h30, no Pontal, que o cantautor de Arcoverde irá apresentar as canções do seu álbum a solo e de estreia, “Lira”.
Em conversa no Centro de Artes de Sines, José Paes de Lira (Lirinha) explica como se livrou de fardos (e de etiquetas) que carregava, de forma a abraçar um projecto mais libertador em termos criativos.
– O facto de assinares este primeiro disco a solo em nome próprio (José Paes de Lira), de o álbum chamar-se “Lira” e do alinhamento terminar com o teu filho João a cantar, reflecte o desejo que tinhas de abraçar um projecto mais pessoal, certo?
Posso dizer-te que é o disco dos meus sonhos. Tinha 10 anos de trabalho com outro grupo e desejava fazer esse disco. O que muda no trabalho do Cordel do Fogo Encantado para este projecto a solo, é a ampliação dos recursos harmónicos. O Cordel foi um grupo que nasceu no teatro e que tinha como objectivo o impacto cénico.
– Vivia muito à base da percussão, muito rítmico, pouco harmónico…
Eram quatro percussões e um instrumento harmónico (violão) e isso não foi uma coisa por acaso. Foi pensado pelos membros do grupo. Eu participei na construção dessa estética. Vivi 14 anos como membro, compositor, cantor, intérprete e líder de banda. Era o som que queria fazer nessa altura. A partir do momento em que comecei a compor mais canções e a descobrir-me como compositor, comecei a desejar ampliar esses elementos harmónicos, com mais possibilidades instrumentais de suporte às harmonias, às melodias, às vozes. Isso foi crescendo e decidi sair de um grupo cujo motivo, que não foi originado por qualquer desentendimento, tornou mais difícil essa decisão. Foi uma decisão estética.
– Sentiste um esvaziamento criativo no Cordel?
Não. Precisava de fazer uma música que tivesse mais recursos harmónicos. Ter esse momento de envolvimento musical sem limitações conceituais. O Cordel já tinha definido o seu som. Como artista, conforme escrevi na carta de saída, era importante para mim ter uma nova experiência musical devido ao momento que estava a viver.
– Esse desejo não terá tido também alguma coisa a ver com o momento familiar que vivias em paralelo? [NR: 2010 foi ano em que Lirinha dissolveu o projecto Cordel do Fogo Encantado e se divorciou da actriz Leandra Leal]
Não.
– Foi apenas coincidência…
É. Achei que deveria fazer aquilo no momento certo. Queria trabalhar com alguns recursos que habitualmente estava impedido de fazer: uma relação maior com o silêncio e, como te disse, com os recursos harmónicos. Trouxe guitarras, violões, piano, sintetizadores, órgão. Isso para mim foi importante.
– No Cordel havia também uma estética que apontava para uma determinada geografia – tribal, amazónica, nordestina. Neste disco a solo há um contexto urbano, universal…
Sim. Os instrumentos são carregados de símbolos. Antes mesmo do Cordel se apresentar, a percussão já trazia características ancestrais, pela própria formação instrumental do grupo. Vendo isso, as pessoas têm essa sensação de se tratar de uma coisa de raiz, antiga. Como eu dizia numa música do Cordel: de antes dos Mouros.
– Mesmo aquela poesia repentista do Zé da Luz, remetia para um universo em que as quadras eram transmitidas oralmente, em que os poetas não sabiam ler nem escrever. Até mesmo o linguagar do “Lampião”…
Exactamente. Essa questão já me acompanhava antes de sair do Cordel porque a música que fazíamos não era tradicional do nosso lugar. Fazíamos uma música muito louca, muito diferente da que se fazia na nossa cidade [Arcoverde]. Na capital de Pernambuco, no Recife, achavam que fazíamos uma música do Sertão, que éramos os representantes desse lugar e da música rural independente.
– E em São Paulo tinham-vos como representantes da música pernambucana (risos)…
Sim. Várias pessoas diziam que era muito comum isso. A voz do Sertão. Isso, para mim, era um prazer. Mas ao mesmo tempo, no meu caso, com a poesia rimada e metrificada. Todo o artista tem uma escola. Alguma coisa impulsionou e deu alimento às suas raízes. No meu caso, foi a cantoria, foram os poetas improvisadores, os violeiros repentistas. Cresci com eles. Até aos 18 anos apresentei-me com eles, antes de criar o Cordel. No intervalo, dizia poesias de Zé da Luz, João Paraibano, Pinto do Monteiro.
A partir de certo momento, senti necessidade de me envolver com a poesia que não era rimada e metrificada mas, entre a minha geração, era o representante dessa poesia. Comecei a perceber que estava a levantar bandeiras, independentemente da minha criação. Eu já era um representante de uma série de coisas.
Então, essa minha saída do Cordel foi também uma acção de libertação de várias imagens que estava construindo. Nunca me irei distanciar dessa poesia que me formou, nem mesmo neste disco. Até te cito dois exemplos. Tem uma música que se chama “Adebayor”, em que eu digo: “vou fazer uma casa no ar, sem levar nada do chão”. Isso é um mote dos cantadores que eu escutava quando tinha 14 anos. Era uma relação com o realismo fantástico – vou fazer algo que não é concreto, que é subjectivo.
Numa outra música, que abre o disco, “Ai Se Não Fosse o Amor”, escrevi um “negócio” que diz: “Mudei para a lage de um prédio vermelho, no alto é sempre bem melhor para quem vive só”. Nós chamamos lage ao tecto. Depois de ter escrito essa letra percebi que era um poema que dizia há muito tempo de Manuel Filó: “quando falta a companheira na vida de um passarinho, ele caça um pau bem alto para construir o ninho, devido a ser menos triste para quem mora sozinho”. Era uma lógica que eu já tinha vivenciado.
Envolver-me em poesia sem rima e sem métrica também foi uma abertura, uma libertação. Porque não abandono essas minhas coisas do passado, mas pude ter um contacto com coisas diferentes.
Considero que as nossas raízes são diferentes das árvores. Nós movimentamo-nos e, por isso, as nossas raízes, são aéreas que captam várias coisas.
– O facto de “Lira” acabar com “My Life”, um tema em inglês e com o seu filho João a cantar, quererá dizer alguma coisa? Será um prenúncio de uma passagem de testemunho?
Não coloquei a música com essa metáfora, com esse objectivo. Na minha região, é muito forte fazer uma música em inglês. É quase político, isso. Acusam-nos de perdermos as raízes.
– Torna-se então mais fácil aceitar uma criança a cantar em inglês…
Sim. E é o meu filho que viveu quatro anos no País de Gales. Hoje tem dez anos, mas quando gravou a canção, tinha nove. Ele compõe bastante e, quando estava de férias no Brasil, mostrou-me a música. Foi no Carnaval, quando estava gravando este disco. Conheci outras músicas dele.
– Com dez anos e já compõe? Com violão?
Não. Ele agora toca teclado. Compõe com a cabeça. E aí ele mostrou-me essa música, estava a ir para o estúdio com ele. Perguntei-lhe se ele cantava. Ele disse que sim. Um amigo gravou o teclado de base e ele faz “My Life”. Uma letra que se relaciona comigo, tem uma coisa do pai e, para mim, tornou-se emblemática. De qualquer forma, é meu filho, minha continuação, que já teve uma experiência noutro país e que, por isso, tem propriedade para cantar em inglês.