ANA SOFIA VARELA, FERNANDO JÚDICE (baixo acústico), JOSÉ PEIXOTO (guitarra clássica) e VICKY (percussões). Como o próprio nome deixa transparecer, SAL simboliza a relação dos portugueses com o mar. É uma música de andarilhos, de ida e volta, que suga a alma do fado e do flamenco (mas que consegue fugir aos lugares comuns de ambos os géneros) na raia alentejana, atira-se ao jazz manouche e perde-se por vezes na cadência rítmica árabe (do norte de África). Há a viagem habitual às nuvens por via da guitarra clássica do prolífico FERNANDO JÚDICE , mas há também uma certa tensão e nervo que se recomenda, sobretudo em “Ai, mas ai de mim”, que se destaca claramente de um punhado de belíssimas canções assinadas por TIAGO TORRES DA SILVA.
Este quarteto de pesos-pesados apresentou-se recentemente a portuenses (na Casa da Música) e lisboetas (no Cinema São Jorge) e volta a actuar esta quinta-feira (dia 12 de Abril) na Capital, no Teatro da Luz (às 15h), Programa “Viva a Música” de Armando Carvalhêda, na Antena 1. A 8 de Junho participam nos IV Encontros de Culturas de Serpa.
SAL é um projecto que nasce da cumplicidade entre dois músicos que, além de trabalharem juntos nos MADREDEUS, já tinham colaborado em outros projectos paralelos. Que cumplicidade é essa?
F. Júdice: O trabalho que ambos fazemos em conjunto (o que fizemos para o Carinhoso com a música de PIXINGUINHA e agora este para o SAL), é muito estimulante para mim. Primeiro que tudo, e isso descobri-o com o Carinhoso, dá-me uma grande liberdade e permite-me explorar caminhos e linguagens que não são tão comuns quando há mais instrumentos envolvidos. E depois a maneira do Zé tocar, a quantidade de recursos instrumentais que ele domina, a maneira criativa como os utiliza e a variedade de soluções que ele consegue apresentar são para mim um grande incentivo e dão-me pistas para soluções musicais que porventura não encontraria noutro contexto.
Neste projecto, apesar de haver mais músicos envolvidos (o percussionista VICKY e a fadista ANA SOFIA VARELA), a maneira como começámos por trabalhar os arranjos foi muito semelhante ao que se passou com a música de PIXINGUINHA. Isto é, começámos por trabalhar os dois e só mais tarde, já com as nossas partes concluídas, incluímos a parte do VICKY no arranjo e a parte cantada com a Ana Sofia. Isto fez com que o processo se repetisse e tornássemos a construir o edifício em volta da guitarra e do baixo, mas agora com a vantagem de estarmos a trabalhar material da nossa autoria e com a sensação de estarmos a criar uma linguagem com outra originalidade. Se a isto juntarmos o facto de termos partilhado muito tempo de viagem e de termos desenvolvido uma série de cumplicidades que transformam as nossas sessões de trabalho em convívios bem dispostos, temos um prazer adicional que não é de desprezar.
J. Peixoto: Conheci o Fernando nos idos anos 80 do século passado. Tocámos juntos nessa altura em grupos que faziam música instrumental, num contexto daquilo a que se pode chamar de Jazz Europeu. É uma colaboração e uma amizade antiga e, posso dizer, sempre renovada. O pico dessa colaboração deu-se no disco Carinhoso. Aí deu para perceber, pela natureza do trabalho que estávamos a fazer, que os resultados desses nossos encontros em dueto conduziam sempre, de uma maneira espontânea, a soluções que geravam uma linguagem musical pouco padronizada, original e muito orgânica. Para além das qualidades que o Fernando tem como “baixista” – a consciência do papel de “centro” num colectivo musical – nesse disco do Carinhoso foi evidente o cruzar de uma fronteira a que muitas vezes o “baixo” está remetido, para revelar um melodista de recursos imaginativos e dotado de uma capacidade técnica que fez sempre da música, e não dos dedos, o principal limite. Tive sempre a meu lado como que uma guitarra barítono que, com inteligência, nunca se afastou do seu papel fundamental de eixo. Uma espécie de “dois em um”. E quando é assim o estímulo e o prazer estão sempre presentes. Portanto, era mais ou menos evidente, que uma experiência tão gratificante não ia ficar por ali. Foi uma questão de tempo e de oportunidade o termos arrancado com esta ideia do SAL. Agora, à volta de música original e numa primeira fase, mantivemos a mesma metodologia em relação à construção dos arranjos. E constatámos que tínhamos em dia, a cumplicidade e o prazer de fazer música. Os resultados, naturalmente, voltaram a acontecer. E a surpreender(nos).
Muito deste repertório inicial foi criado enquanto vocês se encontravam em viagem com os MADREDEUS. É diferente criar música de alma portuguesa num quarto de hotel dos Estados Unidos, Japão ou Grécia, do que numa sala de ensaio em Lisboa? Sentem-se mais portugueses quando estão fora do país?
Algum do material do SAL foi criado em viagem mas outro não. Os arranjos sim, foram criados em viagem e o facto de se estar isolado num quarto de hotel ou camarim de teatro, longe de qualquer tipo de obrigações ou compromissos familiares, em total afastamento das tarefas quotidianas e sem solicitações exteriores, origina uma situação muito propícia à concentração e à entrega ao trabalho. Fora do horário de estrada, como os ensaios de som e concertos, praticamente não existem obrigações que nos possam distrair dos objectivos a que nos propusermos. Esse foi um factor determinante na nossa metodologia, na rapidez com que conseguimos dar andamento ao nosso trabalho e que ajudou bastante a focar as nossas energias criativas. A alma, essa nunca nos abandona e viaja sempre connosco.
Este é um projecto que apesar de ter um código genético marcado pelo fado e pelo flamenco extravasa totalmente estes géneros musicais, É tocado por uma miríade de culturas e estilos – swing e jazz manouche, ritmos árabes, alma alentejana da ANA SOFIA. É isto que vocês definem de “sonoridades atlânticas com influências ibéricas”?
Sim, sem dúvida! Apesar de não se tratar de um disco de fado, a presença do fado nalgumas composições, mas principalmente na voz e na maneira de cantar da Ana Sofia são uma evidência. A sua alma alentejana e a influência que tem do canto flamenco (ela cresceu e criou-se em Serpa onde o convívio raiano é uma realidade) são também uma marca forte da sua personalidade enquanto cantora. A nossa felicidade foi ter encontrado uma pessoa que além de ter a vivência tão portuguesa do fado consegue reunir todas estas influências, por assim dizer ibéricas, e com a inteligência musical para as incorporar na música que fizemos. Na realidade essas influências estavam já patentes na nossa música. A maneira como a ANA SOFIA a canta veio dar-lhes ainda um maior corpo, torná-las mais legíveis.
Apesar de muito mediterrânico, não me parece que este disco tenha uma ligação com o outro lado do Atlântico. Será que este foi um exercício de libertação do passado (leia-se “Carinhoso”)?
O Carinhoso era um disco inteiramente dedicado à música de Pixinguinha, um compositor com uma importância tal na música brasileira que fez com que VINÍCIUS DE MORAIS um dia dissesse que “se não fosse Vinícius queria ser Pixinguinha.” O universo e a importância de PIXINGUINHA foram tão marcantes na música popular brasileira, que só o facto de nos termos apercebido da sua grandeza gradualmente e à medida que íamos descobrindo e trabalhando a sua música, fez com que nos aventurássemos no seu mundo de uma maneira tão despreocupada. Se o tivéssemos compreendido logo de início, se calhar a nossa coragem não teria sido a mesma. Foi a ingenuidade da ignorância. Portanto, aqui não se tratou de um exercício de libertação, mas sim de um exercício de um relacionamento e de um estilo instrumental, que teve a felicidade de nascer em torno da música de PIXINGUINHA, mas ao qual quisemos dar continuidade com um trabalho original. Quanto às ligações, elas são as que mais naturalmente nos acompanham e que são o fruto natural das nossas experiências e vivências musicais.
Apesar de ser um projecto que simboliza a nossa relação com o mar, parece-me nunca passar além Bojador. Porquê a ausência do ‘sal’ do mar do Índico?
Acho que é uma questão de proximidade. E não somente geográfica. A cultura musical popular portuguesa dos nossos dias é uma cultura mestiça. A presença de alguns dos povos que Portugal em tempos colonizou é hoje muito forte no território nacional. E essa presença tem sobretudo origem nos territórios africanos de Angola, Moçambique e principalmente Cabo Verde e Guiné-Bissau. De certa maneira são estes os povos cujas formas musicais nos estão “colonizando”, não só hoje em dia como no passado, e que o vêm fazendo com resultados e expressões muito variadas na música popular portuguesa dos últimos 30 anos. Talvez por isso o sal do Índico esteja um pouco ausente deste SAL. O que não quer dizer que não possa vir a estar presente.
Como é que aparece primeiro um letrista – TIAGO TORRES DA SILVA – a recomendar uma cantora para o vosso projecto – ANA SOFIA VARELA?
A verdade é que o Tiago conhece o meio do fado e como tal conhecia muito bem a ANA SOFIA VARELA. Ele já trabalhou muito para o fado como letrista e sabe bem quem anda no meio, principalmente as pessoas mais novas. A Ana Sofia foi a primeira pessoa de quem ele nos falou que poderia ser a voz que procurávamos. Ouvido o seu primeiro disco e independente das qualidades reveladas pela Ana, não nos pareceu que fosse o timbre de voz adequado à música que tínhamos já feito. Foi fruto da insistência do Tiago e depois de nos dar a ouvir gravações recentes da Ana Sofia que decidimos fazer um teste em estúdio onde rapidamente nos apercebemos de que de facto o Tiago estava certo. Obrigado Tiago!
O facto de não desejarem inicialmente uma fadista para o vosso projecto teria a ver com essa vontade de extravasarem por completo o universo do fado?
Logo de início se pensou em alguém ligado ao universo do fado para cantar. O que não podíamos era prever o resultado. E também havia a dificuldade da escolha. Nenhum de nós era um conhecedor do meio fadista e de entre as fadistas mais conhecidas havia vozes que poderiam servir a música do SAL. Mas todas tinham carreiras pessoais muito marcadas e bastante desenvolvidas em direcções que não tornava nada óbvio que se pudessem interessar por um projecto deste género ou que lhe pudessem dar atenção e/ou tempo, em paralelo, ou mesmo como um interregno à sua própria carreira artística. Portanto a coisa não era fácil.
Mas na verdade estávamos à procura de alguém que pudesse não só cantar o fado mas que quisesse e tivesse a coragem e abertura para igualmente se aventurar noutros universos musicais. Daí as nossas reservas e incertezas.
Por ser alentejana e ter não só o fado mas sobretudo o flamenco no sangue parece-me que a ANA SOFIA VARELA é a cantora mais indicada para este projecto…
Sem dúvida. E estamos muito satisfeitos e felizes por os nossos percursos se terem cruzado. Ela não só tem essas influências na sua maneira de cantar como as reconhece na música que fizemos e aplica-as com naturalidade. Para nós tem sido um prazer enorme verificar como ela se apropria e consegue dar credibilidade à música quando a canta.
Porquê uma voz feminina para este projecto? Não acham que faria sentido um certo ‘tempero’ vocal masculino? Não acham que uma voz como a do JANITA SALOMÉ seria mais um ‘ingrediente’ perfeito para a vossa ‘iguaria’ musical?
Certamente que a voz do Janita entraria muito bem neste reportório. O universo musical em que ele se movimenta é de certa maneira paralelo ao do SAL. Mas foi uma questão que nunca se nos pôs. Para além de termos sempre idealizado uma voz feminina procurávamos alguém que se pudesse “entregar” a este projecto e isso excluía logo à partida uma série de pessoas cujos percursos de carreira não lhes ia permitir a dedicação que pretendíamos de um colaborador. Portanto, os parâmetros da nossa procura estavam bastante apurados o que tornava a equação muito complexa. A preferência pela voz feminina foi espontânea e tem naturalmente a ver com uma certa subjectividade.
Dado o ADN deste projecto ser rico em miscigenação cultural, não seria interessante que o SAL funcionasse também como ponto de contacto com músicos de outros países? Não se vêem a convidar um guitarrista e uma cantora de flamenco ou um percussionista do norte-africa para colaborarem pontualmente com o SAL?.
Sim, é uma boa questão. Na realidade já pensámos nisso e poderia ser uma boa ocasião para juntarmos o sal do Índico. No entanto, as nossas energias estão de momento viradas para a divulgação deste trabalho, para a actuação ao vivo e para o desenvolvimento deste reportório em concerto. É essa a razão de ser da nossa actividade de músicos, conseguir mostrar o nosso trabalho ao maior número possível de pessoas, tocando-o em salas de concerto e fazendo-o crescer enquanto objecto e conceito artístico. Vamos dar tempo ao tempo.
O SAL pode muito bem aproveitar a conjuntura extremamente favorável de o internacionalizar. O que é que está a ser feito? Já há contactos em Espanha para licenciamento do disco e marcação de datas para uma digressão?
Estão a ser feitos contactos nesse sentido, mas infelizmente para nós, que temos pressa de ver as coisas acontecerem, tudo tem os seus timings próprios. No entanto, a nossa convicção é que a música do SAL tem os ingredientes que achamos propícios à internacionalização. Tem um conceito original e contemporâneo de mistura de uma tradição com outros elementos que lhe são vizinhos, revela uma cantora com uma voz e uma maneira de cantar com raízes muito portuguesas e é feita com verdade e com entrega. A nosso ver o condimento ideal para que possa despertar a curiosidade de quem se interessa pela diferença.
Só para fazer uma pequena (mas importante) correcção à introdução da entrevista. É que, como aliás se pode perceber no desenrolar da entrevista, o guitarrista é o José Peixoto e o baixista o Fernando Júdice. E não o contrário, como está dito no texto de apresentação. Se ainda puder ser feita a correcção, muito bem: Se não, aqui fica o esclarecimento. Aqui deixo também e desde já os meus agradecimentos pelo interesse que demonstraram pelo projecto SAL e pela divulgação que o site faz da música “diferente” que por cá se faz e que tão arredada anda dos grandes meios de comunicação. Obrigado!
As minhas desculpas por esta imperdoável distracção. Já corrigi. Eu é que aproveito para agradecer o vosso esforço e dedicação em deasenvolver e divulgar fora de portas, através de inúmeros projectos, as “raízes e antenas” (olá AP) da música portuguesa.