TOQUES DO CARAMULO “É ao vivo!”. Que melhor título para descrever a mais recente criação da Associação Cultural d’Orfeu que acaba de editar o seu primeiro registo em CD, captado em Águeda (em Outubro de 2006) num vibrante e participado espectáculo?
LUÍS FERNANDES (acordeão e viola braguesa), ANÍBAL ALMEIDA (rabeca), GONÇALO RODRIGUES (bandolim), FRANCISCO ALMEIDA (guitarra), LARA FIGUEIREDO (flauta), RICARDO COUTINHO (percussão), JOÃO ANDRÉ (cajon) e MIGUEL CARDOSO (contrabaixo) recuperam algum do repertório da Serra do Caramulo (a fonte de mais de 400 modinhas parece ser inesgotável) e, apesar e só tocarem modinhas do seu concelho de origem, os TOQUES DO CARAMULO são actualmente um dos mais dançáveis e modernos projectos “folk” do nosso país. Depois de terem participado recentemente na Rede Galega de Música ao Vivo, os Toques do Caramulo actuam em Sines na noite de 24 de Abril. No dia seguinte apresentam “É ao Vivo” num concerto-baile, no teatro da Luz em Lisboa (às 17h30).
LUÍS FERNANDES responde às perguntas formuladas por este espaço.
É pouco comum para um jovem projecto lançar o seu primeiro registo discográfico com a gravação de um concerto. O título do álbum – [Toques do Caramulo ] “É ao vivo!” –parece manifestar o assumir do projecto como uma banda de palco. Como é que uma banda que ainda não tinha editado nenhum disco consegue ter o calor humano de uma assistência de cerca de 600 pessoas, muitas delas conhecedoras das modinhas recriadas por vocês? Isso é reflexo do trabalho da d’Orfeu ao longo do tempo?
É um facto que foi um concerto muito especial, em casa, com todo aquele ambiente. O concerto gravado teve lugar numa tenda a abarrotar de gente na noite de encerramento de um festival que mobilizou muito público (“O Gesto Orelhudo”) e simultaneamente a abertura de outro (“OuTonalidades”), ambos produzidos pela d’Orfeu em Águeda, por um lado cruzando públicos e, por outro, fazendo render atenções à dupla vocação da associação: a d’Orfeu é programadora cultural mas também estrutura de criação. Isto já para não falar na oferta formativa, fonte da qual nasceu quase todo o trabalho musical que hoje TdC apresenta em palco. Sobre o calor humano, desmistifico-o, acabando por mitificar outra coisa: podemos ter 600 pessoas no público que nunca tenham (ou)visto Toques do Caramulo e conseguimos praticamente o mesmo resultado. É que ensinamos o público na hora, cada vez estamos mais incapazes de retirar às pessoas o prazer de irem para casa com um refrão na cabeça ou a repetir a coreografia gestual da “Dobadoira” ou das “Palminhas”. Por esta dimensão interactiva que se conhece, TdC é essencialmente um colectivo de palco. E o disco tinha forçosamente que o manifestar.
Quem é Francisco Silva? Uma espécie de Giacometti ou Alan Lomax do Concelho de Águeda? Ou somente uma pessoa que tocou na serra, à sua maneira, estas modas que foram passando de voz em voz? Ainda há muita gente a cantar estas modas na serra, ou a tradição já se perdeu?
O Francisco, a quem devíamos chamar Sr. Francisco (mas ele não deixa), é serrano de nascença e, tal como uma mão cheia de outras pessoas no concelho (todas ligadas ao surgimento dos grupos folclóricos nas décadas de 60 e 70), é responsável por um imenso trabalho de recolhas no concelho de Águeda. Acontece que, das centenas de modinhas que esses heróis locais resgataram, o quinhão serrano – aquele em que TdC pega – foi recolhido pelo Francisco nas aldeias serranas. Depois, foi trabalhando em conjunto com “Os Serranos”, uma associação etnográfica que o Francisco Silva ajudou a fundar com o Manuel Farias, que começámos a experimentar, no ano 2000, as primeiras acrobacias musicais sobre esse repertório. E preparámos uma oficina para ir ao Andanças, chamada “Danças e Toques do Caramulo”. Como tantos outros novos grupos, foi lá que tudo começou. E é lá precisamente que, volta e meia, o Francisco Silva nos acompanha para ensinar, ele próprio, as danças ao público de TdC.
Há mais repertório da Serra do Caramulo por trabalhar, ou vocês correm o risco de este se esgotar e de terem de começar a interpretar modas de outras regiões?
A fonte é inesgotável! Há poucos anos, a autarquia editou um Cancioneiro do Concelho de Águeda que tem mais de 400 modinhas e é um calhamaço daqueles… Serranas serão cerca de metade, pois as recolhas incidiram na encosta serrana do concelho, por todo o sopé ocidental da Serra do Caramulo (o que era repertório ribeirinho esteve sempre mais exposto e foi ficando no domínio popular até aos dias de hoje, não necessitou dessa intervenção; se calhar por isso é até de mais questionável genuinidade, pois chegam a aparecer temas idênticos em várias regiões do país). Uma segunda edição do Cancioneiro está por fazer e, com o material recolhido por homens como o Francisco, o Farias, o Américo Fernandes (meu tio) ou o Rui Aguiar, dá para fazer um livro da mesma grossura que o primeiro.
Quando falam na fusão da rudeza da tradição com as cores das novas músicas, gostaria de saber até que ponto vocês são influenciados pela folk europeia (ao nível dos arranjos)?
A folk também cá está, claro! Mas se vamos falar em influências, não sairíamos daqui. O propósito foi e é o de reinterpretar repertório que nos fascina na matriz, ao qual, se lhe conseguirmos dar alguma ribalta, prestamos um precioso contributo, pois são coisas que o grande público não conhece. Mas o que nos move é o prazer de vestir algo que sabemos mais ninguém veste.
Há diferenças na vossa forma de estar em palco quando actuam perante uma plateia em que as pessoas têm de estar sentadas ou num espaço em que têm de por as pessoas a dançar (como no Andanças)?
Garanto, por experiência própria, que há situações em que é providencial ter cadeiras para que venha a ser um concerto festivo e toda a gente dance. Falo de situações em que, sem elas, o público acabará por ficar distante e não se deixar tocar pelo concerto. Mas certo é que, com ou sem cadeiras, não muda a atitude: gostamos de ver o público saltar quando é para saltar como gostamos de ver o público ouvir quando achamos é digno de tal. Já aconteceu a meio de concertos sem cadeiras mandar sentar o público. E um bom chão é óptimo.
Tem sido fácil pôr as pessoas habituadas a mazurcas e valsas dançar este tipo de danças? Há, de facto, vergonha em dançar danças portuguesas ou só falta de experiência?
Falta apenas conhecimento, creio, o que vai lá com mais apostas em continuidade (o que já vai acontecendo; é um esforço em sério crescendo no Andanças, por exemplo). Mas qualquer música ou dança, seja ela originária das aldeias da Serra do Caramulo, do bairro negro de uma cidade norte-americana ou de uma plantação de arroz na China, tem o potencial de agradar ao público. O resto depende, infelizmente em demasia, das armas promocionais. Que são algo nocivo quando o produto é bom: só se deve usar na justa medida, não deixando a moda sufocar a essência.
Como é que este projecto pegando em modas de uma só serra (a do Caramulo), consegue ganhar muito mais exposição do que os CantAutores que recriavam repertório muito mais conhecido?
Pela singularidade. Por mais voltas que demos, mais nenhum grupo no mundo poderá fazer isto que fazemos. E tal não é mérito, é contingência. A mesma contingência que faz com que o Sérgio Godinho ou o Fausto trabalhem infinitamente melhor as suas próprias músicas do que nós, ou muito outra boa gente recrie o Zeca Afonso, por mais interessantes que alguns dos nossos arranjos possam ser (os arranjos de “Alípio de Freitas” e “Acupunctura em Odemira” foram premiados em diferentes ocasiões). Ainda que não premeditada, “Toques do Caramulo” encerra ainda uma grande mais-valia associada à tal singularidade: é uma proposta potencialmente mais sedutora a um qualquer público estrangeiro, ainda que pela lupa do exotismo, do que as recriações de cantautores portugueses. Pessoalmente, depois da epopeia criativa que foi “Os CantAutores” com três anos de concertos por todo o país (que encerram com a minha partida para uma residência artística em Montréal em 2004), encontrei empolgamento para pôr TdC positivamente a moer. Mas, ainda em 2005 e 2006, montámos novas versões de “Os CantAutores”, de cada vez com formações diferentes, para atacar concertos de Abril. A primeira delas, com uma formação à base de sopros (que vem depois a influenciar a criação da d’Orfanfa no ano passado, fanfarra que vem de dar os primeiros passos). A segunda, mais recente, em quarteto com o Miguel Calhaz, o Marco Figueiredo e o Joca (também dos TdC), todos das primeiras formações de OC. Portanto, é um património criativo que está sempre pronto a subir ao palco.
Como é que se encontram actualmente os CantAutores? É incompatível para vocês conciliar os dois projectos?
Completamente compatíveis. Além de compatíveis, complementares. Sendo ofertas artísticas distintas, só nos interessa que encontrem espaço no meio cultural. “Os CantAutores” e “Toques do Caramulo” co-existem há anos, entre inúmeras outras criações d’Orfeu.
Vão participar nas comemorações do 25 de Abril em Sines. Não fazia muito mais sentido serem os CantAutores a actuar nessa noite?
Com efeito, este é o primeiro ano, desde 2001, que não temos qualquer versão de “Os CantAutores” na estrada nas datas do 24/25 Abril. Mas tal acontece agora quando TdC têm um disco acabado de sair, um percurso em reforço e são já uma hipótese consistente para quem programa a determinado nível. O Carlos Seixas [programador da C.M. de Sines] que o diga, ele que no ano passado teve em Sines a versão quarteto de “Os CantAutores”. Este ano, convidou os TdC e espero que tenha feito bem.
Actualmente, encontram-se a participar na rede galega de música ao vivo. Como é que vocês foram entrando tão bem no país vizinho ao ponto de serem a única banda portuguesa seleccionada para esta iniciativa e de terem sido também seleccionados para a final do concurso de novas bandas folk de Navelgas (Astúrias)?
Não me parece que entremos “tão bem” nem em Portugal nem Espanha. Fomos em 2003 à então Sérvia e Montenegro fazer uma tournée de 5 concertos de Toques do Caramulo e isso não fez com que passássemos a ter 50 concertos por ano e editoras a fazer fila para nos editar. As 10 datas já confirmadas em território espanhol em 2007 resultam de mais umas quantas meras oportunidades. Resultantes, é claro, do dinamismo da d’Orfeu que, na pluralidade da sua actividade, vai tendo acesso as estas redes e circuitos. Dificilmente, não seríamos o único grupo português se não tivéssemos sido, talvez, os únicos a concorrer.
O que é que falta no nosso país para que na zona da grande Lisboa ou do grande Porto possam haver iniciativas semelhantes? Isto é, digressões de novos projectos em bares de música ao vivo, pequenos auditórios e outros espaços mais informais?
Isso soa-me a OuTonalidades, o circuito nacional de música ao vivo em pequenos espaços, que a d’Orfeu promove e que já se estendeu a cinco distritos, incluindo Aveiro, Porto, Viseu, Lisboa e Évora. Este ano, vai cobrir metade do território e esperamos incluir alguns espaços de Lisboa e Porto, sensíveis às oportunidades que o OuTonalidades cria, habitualmente com um grande contingente de grupos trad/folk, apesar de ser um evento genérico. As redes não são estabelecidas, na origem, para serem ou parecerem bonitas. São, antes do mais, uma tentativa de combater as dificuldades de um conjunto de promotores, cada qual com as suas limitações. O país está hoje cheio de pequenas redes e circuitos culturais que não passam em Lisboa ou Porto, precisamente porque aí os promotores conseguem supostamente ultrapassar as suas dificuldades mais facilmente, com acesso ao conjunto de meios e retornos que os grandes centros disponibilizam. Os públicos de Lisboa e Porto, que mal servidos não estão, pagam essa pequena factura. Em determinadas actividades mais específicas, o pessoal do Porto e Lisboa vem cair-nos a Águeda, como seguramente vai onde houver o que lhes interessa.
li a entrevista e gostei.
reflecte maturidade e auto-reflexao e desenganem-se os incautos que a
acharem “ao correr da pena”
a confirma-lo, a “tacada” inteligente no momento certo
parabens