FRANK LONDON no RiR | (c) Agência Zero
KLEZMATICS | Ciclo Filhos de Abraão| Culturgest | 24 de Janeiro | Lotação Esgotada
Há uma certa “intelligentzia” adepta da música “folk”, “celta” (ou aquilo que lhe queiram chamar…) que foge como o diabo da cruz às salas de lugares sentados com as desculpas do costume: não dá para dançar, o ambiente é frio, blá, blá, blá. Para muito “folqueiro” que se preze, um bom espectáculo deve ser servido sob uma intensa nuvem de poeira e de diversos tipos de fumos (provenientes das mais requintadas ervas jamaicanas) que se diluem na atmosfera depois de os inalarmos involuntariamente, sem esquecer, claro, o elevado teor etílico da assistência em que o comum espectador não bebe menos de umas 10 cervejas durante hora e meia, além de passar o tempo todo a gritar com o grupo de amigos e a mandar bocas foleiras às artistas do sexo feminino que ousam trazer uma saia acima do joelho.
No grande auditório da Cultugest não há cadeiras que esmoreçam a entrega mútua entre artistas de grande craveira e uma assistência “snob”, é certo, mas esclarecida e participativa. Talvez porque há ali um serviço prestado ao público de elevada qualidade (atentos ao mínimo detalhe como a oferta de programas com textos bem escritos e com informação biográfica o mais detalhada possível), talvez por o espaço não ser demasiado grande (como a Aula Magna) e, por isso, facilmente se esgotem as entradas disponíveis, criando-se a fórmula perfeita para uma noite memorável que, numa sala maior, a meia-casa, não seria tão empolgante para um músico. É esta a sala que AMÉLIA MUGE considera ter “a cara” do seu novo e muito bom disco, “Não Sou Daqui”. Ela sabe bem porquê. Nesta noite, a química da Culturgest (semelhante àquele final arrebatador de WALMEMAR BASTOS em que pôs toda a gente de pé a cantar o hino oficial da Selecção de Angola), voltou a pairar no ar, fazendo com a actuação destes nova-iorquinos tenha sido, de longe, a melhor das quatro a que até hoje assisti (Sons em Trânsito em Aveiro, RIR e Sodra Theater em Estocolmo, com CHAVA ALBERTSTEIN, no ido ano de 99).
Apesar de um início algo morno, com baladas (algo melosas) cantadas em Íidiche quebrarem um pouco a selvajaria rítmica imposta pelas danças klezmer de celebração de casamentos da diáspora judaica, tudo correu bem aos KLEZMATICS. Cedo agarraram o público que foi eufórico em crescendo até ao clímax final com o inevitável clássico “Man In The Hat”. É hilariante ver como os metais FRANK LONDON (trompete) e MATT DARRIAU (saxofone) interagem em arrancadas de génio, com avanços e recuos a várias velocidades, desencontros e encontros propositados, como se de um alegre número de circo se tratasse. É fascinante o momento criado a três com o mesmo DARRIAU agora em berimbau, LISA GUTKIN e um violino lancinante, diabólico, com as cordas friccionadas pelo arco até à exaustão e o baterista convidado de toque suave, pleno de pequenos pormenores em levitação zen. Como é notável a forma como LORIN SKLAMBERG eleva a sua agudíssima voz ao infinito enquanto o tom grave de PAUL MORRISETT vai marcando os tempos, como se de uma linha de baixo se tratasse. Pormenores envoltos na apresentação de um repertório tão marcadamente klezmer, quanto ecléctico na forma como é contaminado por ska, punk, soul, ritmos afro-caribenhos, metais ciganos de leste, transe do médio-oriente.
Num espectáculo comemorativo de duas décadas de existência, houve também breves passagens pela mais recente obra dedicada em exclusivo à poesia de WOODY GUTHRIE (que será apresentado ao vivo pela primeira vez na Europa, daqui por uns dias, no festival escocês Celtic Connections). A uma canção mais enraizada na tradição country / folk americano – “Gonna Get Through This World” cantada por LISA (bem melhor no violino) sucede-se um pérola orelhuda da pop nostálgica dos anos 50 – “Mermaid Avenue”, acabando os KLEZMATICS por nos deixar o desejo de os voltarmos a ver por cá, agora para interpretar as canções de “Wonder Wheel”.