Entrevistas

Rokia Traoré: À procura do som perfeito

Rokia Traoré, maliana de etnia Bamana, editou este mês o seu quarto disco denominado “Tchamantché”. Uma obra dedicada à memória de Ali Farká Touré. A cantora que actuou pela primeira vez no nosso país, há cerca de oito anos no Multi Músicas de Lisboa (no saudoso Cais do Gás), vem apresentar o sucessor de “Bownboï” à Xª edição do FMM de Sines (local onde já esteve em 2004), que marca a transição da orquestração complexa e acústica para uma outra mais simples, eléctrica, suave e «abluesada». “Tchamantché” acentua ainda mais a ideia de estarmos perante uma das mais interessantes vozes femininas nascidas em África. Filha de um diplomata (que entretanto se reformou e que regressou ao Mali), partilhou residência, durante a sua infância e adolescência, entre a Argélia, a Arábia Saudita, a França e Bélgica. Há cerca dez anos, comprou casa em Amiens, no norte de França, na localidade da editora que lhe gravou os seus dois primeiros discos, a Label Blue. Apesar dessa outrora magnífica etiqueta de jazz e de música africana tradicional e moderna ter cessado funções há vários anos, ainda mantém essa habitação. Contudo, Rokia teve de alugar um apartamento em Paris, uma vez que «as actividades de promoção concentram-se todas aí». Actualmente reparte a sua residência entre Amiens, Paris e Bamako no Mali. É esta excitante vivência que lhe permite, por um lado, manter os laços profundos com a sua cultura do ancestral Império Bamana, por outro, ter abertura de espírito suficiente para produzir um disco esteticamente ocidentalizado, moderno, repleto de pequenos e sofisticados pormenores de produção, que mantém intacta a alma africana de Rokia.
Segue-se a primeira de três partes de uma entrevista realizada no próprio dia em que Rokia Traoré actou como convidada no espectáculo de Kronos Quartet no Centro Cultural de Belém (para interpretar os dois temas que gravaram em “Bownboï”). Um dia antes, a Universal Music de França lançou “Tchamantché” no mercado europeu.

Até que ponto o facto de ter ido viver para França há 10 anos atrás lhe deu uma visão mais abrangente da música que lhe permitiu criar o seu próprio estilo, sem nunca perder as raízes da sua etnia Bamana?

Penso é importante para mim sentir-me eu própria. Mas já não me preocupo mais em manter-me ligada às minhas raízes. Aquilo que eu sei acerca da cultura francesa ou do resto do mundo é algo que já está intrincado em mim. Não posso fazer nada contra isso. Mas para assumir isso preciso de estar ligada às minhas raízes, não esquecer quem sou e especialmente de onde venho. Que tipo de origens malianas tenho. Ao mesmo tempo já não penso naquilo que tenho de fazer para continuar a ser maliana. Isso era algo que procurava quando era adolescente, quando não sabia o suficiente sobre as minhas raízes. Há dez anos atrás, quando comecei a gravar o primeiro disco, “Mouneïssa”, visitei a minha aldeia para conhecer esta cultura da minha região, onde há muitos tocadores de balafon. Antes disso, apenas conhecia esta cultura somente por os meus pais me falarem dela. Nessa altura senti necessidade de ir à aldeia onde os meus pais nasceram [Kolokani], onde tive a oportunidade de conhecer os meus tios e os meus primos.

Claro que nessa altura fi-lo apenas por causa da música. Fui lá para tentar encontrar um tocador balafon para actuar comigo no resto do mundo. Mas continuo a ter uma grande ligação com minha família dessa aldeia, ainda que não viva lá. Ainda esta sexta-feira dei um concerto em Bamako. Gostava de ter tocado na minha aldeia, mas não foi possível porque não há infraestruturas para realizar um espectáculo deste tipo. Aluguei um autocarro para trazer 75 pessoas a ver o concerto em Bamako. Esta é a relação que tenho com a minha aldeia. Actualmente, não preciso de ligar aos meus pais para ver se há alguém que me possa arranjar um tocador de balafon, caso precise. Tenho a minha própria relação com estas pessoas que fazem parte de mim. Afinal somos da mesma família. Temos apenas estilos de vida diferentes. Mas o facto de virmos das mesmas raízes foi suficiente para nos voltarmos a ligar. E isso, para mim, é algo de muito concreto.

Referiu por diversas vezes o balafon, mas neste disco não há um tocador deste instrumento de percussão. Ao invés, há bateria. Também não há corá, há harpa ocidental. No entanto faz um uso exaustivo do n’goni. Porquê?

Não há uma pesquisa aprofundada naquilo que faço. Tudo acontece de forma muito natural. A história da harpa é muito simples. Esse tema foi composto inicialmente através de corá, o músico que tocou o tema não o pode gravar. O meu melhor músico [o baixista] também toca harpa. A escolha do n’goni na orquestração é que este é um instrumento que faz parte da música acústica clássica maliana e eu adoro o som desse instrumento. Imaginei este disco como algo só com guitarra, n’goni, baixo e bateria. Quando estamos a criar um novo projecto nunca sabemos se vai ser um sucesso ou não, quer em termos acústicos, quer em termos de marketing. Apenas quis fazer aquilo que sentia. Decidi que tinha de mudar ao verificar que tinha trabalhado cerca de oito anos com orquestração clássica e acústica nos três anteriores álbuns. Não queria fazer um quarto disco desta forma.

Foi a partir dessa necessidade que encontrou a guitarra eléctrica “Gretsch”?

O que está claro é que não decidi parar por causa disso. Continuo a trabalhar com orquestração acústica em diferentes projectos, não neste álbum e não na digressão actual. Queria fazer algo novo, como se fosse para mim um desafio. Com novas coisas para perceber e novas pessoas para trabalhar. Quis voltar à guitarra, que é o meu primeiro instrumento. Há mais dez anos atrás, descobriram-me a cantar e a tocar esta guitarra acústica. Diziam que eu dizia que eu era uma Tracy Chapman. [risos]

Toca três tipos de guitarra [acústica e eléctrica]. Pode descrever as diferenças entre todas elas?

Estas guitarras não soam de forma semelhante. A folk é mais suave e está mais próxima de nós. A guitarra eléctrica é fisicamente tocada um pouco mais afastada de nós. A “Gretsch” é tocada numa posição intermédia, entre essas duas guitarras. À parte disto, não podemos exprimir os mesmos sentimentos com uma guitarra folk, do que com uma guitarra eléctrica. O mais complicado é sempre sabermos aquilo que queremos. Não é fácil chegarmos aonde ambicionamos. Mas quando sabemos exactamente onde queremos chegar, temos 40 ou 50% do trabalho feito.

Que tipo de som procurava quando pegou na guitarra “Grestch”?

Um som blues, um som rock e a mesmo tempo o meu som. Não queria fazer um som demasiado eléctrico, demasiado pop. O mais complicado neste projecto foi a pesquisa que fizemos com o engenheiro de som [Phill Brown] que é também um artista. Sabia o que queria, mas não sabia como o conseguir. O trabalho que lhe dei foi o de ajudar-me a conseguir este som diferente. Não lhe estava a pedir que criasse esse som, estava a pedir-lhe que me ouvisse. É muito difícil encontrar alguém disponível para nos compreender e dar luminosidade à nossa música. Algo que não saberia como fazer, pois esse não é o meu trabalho.

[continua amanhã]

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