Segunda parte da conversa com a maliana Rokia Traoré que este ano regressa ao FMM de Sines para apresentar o seu mais recente disco, “Tchamanthcé” dedicado à memória de Ali Farka Touré.
– Parece-me que o engenheiro de som Phill Brown desempenhou um papel muito importante neste disco. Houve a transição do som acústico para o eléctrico, sem perder as raízes bambara, houve também a inclusão de um tratamento sonoro mais ambiental em vários temas, houve ainda a participação do grande percussionista norte-americano Steve Shehan, habituado desde há muito tempo a fundir sonoridades ocidentais e ambientais com a música árabe de Baly Othmani, entre outros músicos do médio-oriente..
O Steve Shehan participou no final das gravações. Não esteve connosco de início, mas o facto de ele ter experiência e o conhecimento de música que tem, de já ter participado em muitos projectos, faz com que não tenhamos perdido muito tempo. Teve uma grande sensibilidade e percebia muito rapidamente aquilo que queríamos. A maior dificuldade neste trabalho que tive com o produtor Calum McCall foi mesmo o de encontrarmos o engenheiro de som perfeito, que estivesse interessado em gravar este disco e os dois músicos que nos faltavam (um baterista e um outro guitarrista). Tomei conhecimento do Phill Brown ao ouvir o álbum da Beth Gibbons. Fiquei fascinada com o som desse disco. Era esse mesmo tipo de som que queria para este projecto. Conhecia bem o baixista, o tocador de n’goni que vieram do projecto anterior. Conhecia também o guitarrista maliano [Sibiri Koné] e já sabia o que esperar dele. Ele não anda comigo em digressão, mas sabia que se enquadrava no projecto. Outra pessoa muito difícil de encontrar foi também o baterista [Vincent Taeger]. Fizemos várias audições antes de escolhermos a pessoa certa. A última pessoa que seleccionámos para a gravação do disco foi o guitarrista Seb Martel. O Calum foi determinante na escolha deste músico, já que tem um grande conhecimento de guitarras e do som destas. Sentimos que tínhamos que chegar ao som que queríamos durante a gravação destas guitarras e não após a mistura final. Foi importante escolhermos todo o tipo de material adequado: instrumentos, amplificadores, microfones.
– Essa escolha de material foi mesmo determinante no tipo de som que queria obter neste disco?
Claro, mas não foi só isso. Há todo o tipo de material e também a forma de tocar. Foi também importante optarmos por uma gravação analógica. Não queríamos usar Protools ou outro processo de captação digital. Tudo foi captado de forma analógica, em bobines. Foi um processo muito complicado. Tudo foi numerado para facilitar a mistura final. Volto a referir que o trabalho do Calum McColl foi muito importante na escolha das guitarras e dos amplificadores certos. A produção deste disco foi mesmo uma tarefa árdua.
-Ainda não falámos sobre as letras. Em África os músicos são o principal meio de comunicação de difusão de notícias. Neste e noutros discos dá conselhos às mulheres africanas, à sociedade maliana, por exemplo, para não emigrarem em massa e «sem rede».
Penso que já não somos o principal meio de comunicação. Fomos ultrapassados pelo telemóvel. É incrível o trabalho que a Orange está a fazer em África e no Mali. Mas tudo isso é óptimo. Se os telemóveis estão a ter todo este sucesso é porque as pessoas sentiam necessidade de os usar. Antes, o seu uso era considerado um luxo, hoje é uma coisa normal. Ao mesmo tempo, os artistas continuam a fazer parte de diferentes meios de comunicação. Na música consegue encontrar letras de todo o tipo, de amor e outros aspectos da vida. Neste mundo, o que é concreto é que através de uma letra passamos uma mensagem. E a audiência está aberta a essa mensagem. É por isso que penso que, quando o nosso trabalho é este, quando temos uma audiência, é importante ter uma mensagem a difundir e tirar vantagens deste sistema para chegarmos às pessoas. Em “Tounka” não digo para não imigrarem porque não é uma boa coisa. Hoje em dia, não é um muito bom para África as pessoas saírem em massa. Se quisermos que África seja um melhor sítio, temos de ser nós a fazer o trabalho. Ninguém virá de fora para nos ajudar. Sabemos que quem vem de fora apenas vem para tirar aquilo que precisa para o seu país. De momento a questão é: Que continente é este? África? Como será possível ter melhor qualidade de vida neste continente? Sei do que estou a falar porque ainda do ontem cheguei do Mali. Reparto a minha residência entre a França e o Mali. Sei o que custa para muitos africanos viver o dia-a-dia. Mas, se deixar o país é a única solução, já o fazemos desde o fim do colonialismo e, por isso, deveríamos estar melhor do que estamos actualmente. Temos de encontrar juntos uma solução melhor. Mesmo que os líderes europeus digam que África é um problema, que não consegue desenvolver-se e que está condenada ao fracasso. Essa tese é confortável para eles. O equilíbrio económico e social deles depende desta tese. Nada é a preto e branco em termos económicos e políticos. Tudo é complicado. Os líderes africanos têm a sua parte de responsabilidade nesta tese. Mas o que é certo é que este problema é humano e há muita gente a sofrer por causa disso. Não é possível aceitarmos este estado de coisas nos dias de hoje.
[parte 2 de 3; continua amanhã]