Reportagens

Falun Folkmusik Festival 1997

Por estes dias deveria de estar a iniciar-se o (outrora) maior celebração de músicas do mundo dos países Nórdicos e uma das maiores de toda a Europa. Curioso por saber o programa deste ano, reparei que o Falun Folkmusic Festival deixou de existir. O FFF que ocorria na região sueca de Dalarna desde 1986 “implodiu” há dois anos atrás, vítima das politiquices locais e da substancial redução de fundos governamentais de apoio ao festival. Para mostrar a grandeza daquele que foi uma das grandes referências de festivais “folk / world” recupero um texto com 9 anos de existência e relata a minha ida à edição de 1997 do FFF. Não subscrevo algumas das coisas que foram escritas há quase uma década como as comparações de Shooglenifty com Hedningarna, ou de Kar Kar com Ali Farka Touré. Viver é evoluir, não é verdade?

Falun – O festival dos concertos perdidos


Imaginemos centenas ou mesmo milhares de jovens músicos frequentando a vertente folk do conservatório. Imaginemos essas almas perderem horas e horas em bibliotecas pesquisando grandes compositores de outros tempos da tradição ibérica, como Afonso X. Imaginemos um país que tem cerca de 20 000 composições no papel por explorar. Imaginemos um órgão de estado que ofereça subsídios para gravação de registos fonográficos. Imaginemos músicos de Norte a Sul do país, frequentando workshops de Adufe, Cavaquinho, Gaita Transmontana, etc. Imaginemos um festival onde tudo isso acontece, num espaço urbano com as dimensões da baixa pombalina, onde vamos descobrindo, assim que entramos em certas casas, ao longo das ruelas, cerca de 15 palcos… não! Não é Portugal certamente!

Os números…

Numa pequena cidade sueca de 50 mil habitantes tem lugar anualmente aquele que é (conjuntamente com Kaustinen na Finlândia) o maior evento escandinavo na área da folk / world music. 500 artistas de 37 países, realizando um total de 170 espectáculos, com cerca de 35 cursos nas mais diversas áreas (balada medieval nórdica, percurssão africana, violino, nickelharpa, etc.) onde participam 500 alunos, sendo 100 deles adolescentes ou crianças… e para dar cobertura deste mega evento, apenas 200 diferentes órgãos de comunicação social. Números que fazem corar de inveja os mais frequentados festivais pop/rock nacionais como o Super Bock Super Rock ou o Imperial ao Vivo, realizados num país que até possui uma população superior à sueca. Mas estarmos a relacionar Portugal com a Suécia é praticamente o mesmo que compararmos um Fiat 600 com um Audi 4 turbo diesel…

…os concertos…

Shooglenifty (Escócia), Kar Kar (Mali), Sabri Brothers (Paquistão), Compay Segundo (Cuba), Yulduz Usmanova (Uzbequistão), Kathryn Tickell (Inglaterra), Boys Of The Lough (Irlanda), La Bottine Souriante (Canadá), Sally Nyolo (Camarões), Damian (Roménia) e muitos mais nomes das músicas do mundo, complementado por uma autêntica avalanche nórdica, como por exemplo, Hedningarna, Tellu Virkkala, Väsen, Sorten Muld, Frifot, Kalabra, Orientexpressen, Groupa, Lena Willemark, Ale Möller + Gunnar Stubseid, Rosenbergs Sjua… espelham bem a dificuldade que foi, ver um espectáculo do princípio ao fim. Apesar da música começar a ecoar em Falun logo pelas dez da manhã, estendendo-se em jam sessions até altas horas da madrugada, foi praticamente impossível ver metade das ofertas mais apetecíveis. Pois, além de se multiplicarem os eventos imperdíveis, cujos horários se sobrepunham, andar de palco em palco também não era tarefa fácil. Imaginem um festival com estas dimensões realizado na baixa lisboeta, com três propostas interessantes (Shooglenifty, Hedningarna e Bottine Souriante) a actuar ao mesmo tempo no Rossio, na Praça do Comércio e na Praça da Figueira. Bom, quando não se perdia inevitavelmente aquilo que se queria ver, a melhor solução era mesmo repartir o tempo entre os palcos, nem que para isso ganhássemos bolhas nos pés.

…os Hedningarna e os eco eventos…

Assistir, por exemplo, aos Hedningarna tornou-se uma tarefa complicadíssima. Ao mesmo tempo, actuava Kirsten Bråten Berg, norueguesa autora de “Frå Senegal Til Setesdal”, seguramente um dos melhores álbuns de músicas do mundo deste ano, que reune a balada medieval nórdica com a cultura griot do Mali. A oito quilómetros de Falun, à beira de um dos três mil lagos que rodeam a capital da folk sueca, realizava-se aquilo a que os organizadores do festival apelidaram de eco evento. Aí seria recriada a técnica vocal milenar do “Kulning”, usada ao longo de diferentes eras com o intento de chamar os animais de pasto. Perante tal, a única solução foi mesmo perder a Kirsten e ver somente meia hora dos Hedningarna, que se apresentaram sem o joiker finlandês Wimme Saari, sendo este praticamente um espectáculo instrumental. Durante este tempo, o agora trio passou a pente fino o último registo “Hippjokk” e, através dele, exibiu uma série de instrumentos. Nickelharpa medieval com a construção mais simples, tendo somente três cordas, duas delas de ressonâcia, flautas de vento e mandora – da família dos alaúdes – processada electronicamente por forma a soar com a mesma intensidade de uma guitarra eléctrica, são alguns dos elementos da imagem de marca Hedningarna que ajudam a criar a estranha, ancestral e poderosa sonoridade que tem feito escola na Suécia. Numa região em que o violino impera, os Hedningarna (a par dos Väsen), a jogar em casa, registaram talvez a maior afluência de um público mais jovem, explicando-se em parte o porquê da haver actualmente entre a nova geração de músicos folk – Sälta, Garmarna, Big Fish, Kalabra, Ranarin – uma especial apetência para o recuperar das baladas e ambientes medievais sangrentos, apimentados por uma certa face grotesca. A perda de cerca de uma hora de actuação dos Hedningarna, acabou por ser compensada pelo tal eco evento, que é já uma imagem de marca deste Falun Folk Festival. Ao longo de um lago, espalhavam-se pequenas tochas e velas que iluminavam o local e criavam um ambiente próprio de festividades carregadas de mitologia. O público ia chegando de autocarro e ao instalar-se no local tentava ser o mais ordeiro possível, como se dentro de uma igreja estivesse. Os músicos (vozes e tocadores de corno de vaca), dispunham-se em pares, por seis pontos estratégicos ao redor do local, aproveitando a melhor ressonância quando cantavam e tocavam. As vozes agudas e bem projectadas, usadas em outros tempos – sobretudo nas montanhas – trabalhadas em laboratório para se fazerem ouvir em longas distâncias, sucediam-se. Criavam-se assim momentos de parada e resposta, onde escutavamos vozes e cornos quer à direita, quer à esquerda, quer ao fundo ou mesmo ao pé de nós, oferecendo-nos diversas paisagens sonoras que jogavam com as distâncias a que os músicos se encontravam. Na noite seguinte a história de animação ao redor de um lago repetia-se com uma festa africana, carregada de percurssionistas e bailarinas. Não tão ordeira quanto a noite anterior, os músicos que mais uma vez se dispunham ao longo do lago, bem se esforçaram em comunicar entre si e oferecer alguns momentos dentro dos parâmetros organizativos da noite anterior. Mas aqui a inexperiência, dado que era primeira vez que uma noite destas se edificava, falou mais alto. Ninguém respondeu a ninguém, e as “raves” africanas onde o “ecstazy” era substituido pelo vinho e cerveja, foram-se sucedendo em diversos pontos do lago.

…os estrangeiros…

Do resto que se pode ir vendo, dez minutos aqui, dez minutos ali, destaque para os escoceses Shooglenifty, um autêntico poço de força e criatividade. Uma espécie de Hedningarna das “highlands” britânicas, se bem que com uma postura dance rock muito mais assumida. Os Shooglenifty poderiam talvez ser um clone dos Young Gods se estes se dedicassem à tradição Celta. Urge vê-los num dos próximos Intercélticos do Porto… o que será do cinema do Terço… Do Quebeque, La Bottine Souriante, que não tão perversos quanto os Shooglenifty, conseguiram igualmente agarrar o público à dança com a facilidade dos reels de aroma meio latino, impregnados em arranjos brass. Uma autêntica banda de palco, que acabou de lançar o registo “En Spectacle” gravado ao vivo. Damian da Roménia, mostrou através da conjunção entre contra baixo, cymbalon, flauta de pan, todo o virtuosismo, nervo e velocidade, próprios da tradição “taraf”. Sabri Brothers do Paquistão exultaram através canto e dança toda a espiritualidade qawwali que Nusrat Fateh Ali Khan inicialmente internacionalizou. Kar Kar do Mali, não precisou mais de uma simples percurssão e uma guitarra acústica para nos devolver à essência do blues africano, revelando-se ao nível de um Ali Farka Touré.

…e os locais



(c) Christer Harryson & Polyfoto

Relativamente aos grupos da casa, depois de toda a expectativa à volta dos Hedningarna, o maior interesse caiu nos Väsen que se revelaram como um dos mais consistentes projectos nórdicos. André Ferrari, percurssionista e elemento que normalmente se apresenta em palco envergando uma indumentária índia, está apenas há cerca de dois anos no grupo, o suficiente para alargar, e de que maneira, os horizontes destes suecos, trazendo consigo toda uma série de intrumentos de percurssão africanos e latino americanos. Há já característica e notável forma de estar em palco do anterior trio num misto de humor e entrega total, que pecava um pouco em alguns casos, apenas na forma híbrida das polskas e da combinação nickelharpa, guitarra e violino, reiventa-se agora esta tradição a partir de uma matriz nómada. Destaques ainda para Lena Willemark por ser incontestavelmente a mais inventiva e sedutora voz sueca. Ale Möller por ser um dos músicos de maior experiência e aquele com fronteiras mais largas. Ale é talvez o músico que mais intensamente sente a música. Toca alaúde com os dedos e com o resto do corpo, que gosto dá vê-lo em palco. Kalabra pelo novo sangue. Rosenbergs Sjua pela forma clássica de interpretar a tradição oral. Orientexpressen pelo virtuosismo e coração que se encontra a sudoeste… nas Balcãs.

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