Rupa Marya e a miscigenação musical que exercita com os seus April Fishes, é o reflexo de uma América geradora de um cada vez maior número de artistas americanos (ou, simplesmente, com residência nos Estados Unidos) a olharem para uma míriade de culturas provenientes de todos os continentes.
É neste projecto que se conta a história de vida de uma cantora e compositora residente em São Francisco de sangue indiano que é médica e cujos pacientes “chicanos” a inspiram a escrever canções interventivas que denunciam a política norte-americana de imigração, a «linha da morte» que separa os Estados Unidos do México (à semelhança de Lila Downs) e a dominar melhor o castelhano.
Estreia-se no nosso país numa altura em que já gravou o sucessor do belíssimo “Extraordinary Rendition”, que deverá ser editado depois do Verão. Segundo álbum denominado “Este Mundo” que incluirá um samba cantado em português, que teremos a honra de escutar, hoje à noite em Porto Covo, no primeiro dia da 11ª edição do FMM de Sines.
– Neste momento acabou de gravar o novo disco “Este Mundo”. O que é que poderemos ouvir neste disco que não ouvimos ainda em “Extraordinary Renditon”?
Gravámos “Este Mundo” com Oz Fritz, que já produziu discos do Tom Waits e dos Ramones. Fez um trabalho maravilho. Será editado em Novembro na Europa. Penso que este álbum é ao mesmo tempo mais intimista e mais explosivo. Sinto que o conteúdo político deste disco está muito mais claro. O som dos instrumentos está mais claro, cristalino. Tem muitos convidados, como o rapper Boots Riley dos Coup. A maior parte das canções estão escritas em Espanhol. Estou muito satisfeita. O primeiro disco não tinha o som que eu tinha em mente e este tem.
O que é que mais apreciou no trabalho do Oz Fritz?
Ele é o mais incrível engenheiro de som que eu já conheci. Trabalha sobretudo com equipamento «vintage». Junta os sons mais íntimos e delicados de todos os instrumentos. Eles brilham realmente neste disco. Dá um grande prazer ouvir este disco.
Porque é que as canções deste novo disco estão maioritariamente escritas em castelhano? Por causa da experiência com a Associação Catapulta?
Sim. A maior parte do meu tempo, nos últimos anos, foi passado em São Francisco rodeada de pessoas provenientes da América Latina. Senti que tinha de aprender espanhol. Ainda continuo a estudar. Incomoda-me a forma como a vida destas pessoas é afectada por questões políticas. Foi isso que me inspirou a escrever a maior parte das canções deste disco. Reflecte aquilo que sou e com o que estou socialmente envolvida.
Será que é uma espécie de segundo capítulo da canção “Poder” de “Extraordinary Rendition”, em que fala de uma senhora mexicana que morre de cancro.
Sim. Isso foi o início. Mas aquilo que abordo neste disco é um examinar mais profundo de outros aspectos mais íntimos. Não pretendo falar de fronteiras geo-políticas, mas sim sobre a forma como nos separamos, como traçamos linhas pessoais entre nós e os outros, a forma como não nos sentimos confortáveis em contacto com determinadas pessoas. São fronteiras reais e figurativas que reflectem aspectos sobre os quais tenho sentido e pensado nos últimos anos.
Que experiências teve quando viajou até Tijuana e teve a oportunidade de contactar com imigrantes deportados?
Foi muito profundo. Muitas pessoas a contarem as histórias. O início de “Este Mundo” é uma gravação efectuada junto ao muro em 1993. Depois disso já construíram mais dois muros ao longo da fronteira. Falei com famílias sobre a forma como este muro os afecta, sobre o estado de pobreza em que se vive em Tijuana. O que realmente me incomodou nessa digressão foi a forma como o modelo económico força as pessoas a entrarem ilegalmente nos Estados Unidos. Eles não vêm aqui de livre vontade. Vêm porque não há trabalho no México. Não há forma de alimentar as suas famílias.
Que opinião tem sobre o trabalho de Lila Downs que gravou o álbum “La Linea”?
Muito bonito. Lírico. Tenho muito respeito pela forma como ela escreve histórias. Uma belíssima cantora e compositora, mas penso que o nosso trabalho não seja exactamente a mesma coisa.
Sim. O trabalho da Lila Downs está mais focado na música mexicana e latina-americana, o seu é mais global.
Sim. Ela está muito enraizada na herança cultural da música mexicana. Para mim, essa herança é apenas uma peça de um puzzle mais largo. Aquilo que vemos que está a acontecer com os Estados Unidos e com o México já acontece há muito tempo entre a Europa e a África ou a entre Europa e a Turquia. Sinto que este é um fenómeno que tem muitas línguas e tem muitos estilos musicais. Neste momento aquele que me afecta mais é a realidade mexicana.
Nós últimos dois / três anos têm surgido nos Estados Unidos uma série de projectos multi-culturais que estão a olhar agora tanto para a música africana e latino-americana, como para a balcânica, cigana de leste. Tanto na Califórnia, como em Nova Iorque. Como olha para este fenómeno?
É um sintoma, um vírus que se pega pelo facto de termos estado oito anos debaixo de uma «americofobia», durante este período de tempo em que o resto do mundo nos odiou. Muitos de nós, obviamente discordaram dessas políticas em que as pessoas se tornaram mais fechadas e desconfiadas. Penso que há um ressurgir da nossa identidade multicultural e do desejo de reparar o mal que foi feito perante o resto do mundo. Porque todos nós viemos de algum lugar e todos nós temos a nossa própria herança cultural. Mesmo que a ocultemos, há muitas famílias mexicanas que não falam espanhol nos Estados Unidos, também as celebramos. Aquilo que mais gosto em São Francisco e em Nova Iorque, muito semelhantes neste ponto, é que existe uma riqueza e diversidade cultural muito grande. E as pessoas comunicam entre si sem qualquer tipo de barreiras. É uma altura muito interessante para se ser artista, para viver tudo isto. Não sei isto é decorrente do efeito Obama, mas têm emergido grupos de pessoas interessadas no diálogo «cross-cultural», em estreitar laços entre as pessoas, em vez de as alienar.
[continua]