NICK GOLD com ALI FARKA TOURÉ e TOUMANI DIABATÉ | (c) Christina Jaspars
A World Circuit é, provavelmente, a mais importante editora de músicas do mundo da actualidade. De há uns tempos para cá (sobretudo depois de gerido todo o sucesso causado pelo êxito de multi-platinado Buena Vista Social Club) tem tratado cada nova edição com extremo cuidado, quer na método de gravação dos discos (se possível no local onde os músicos vivem), quer no trabalho gráfico das capas, quer através de uma rígida estratégia de lançamento espaçada no tempo (que não permite mais do que cinco edições anuais) e na selecção de um lote restrito de notáveis músicos. NICK GOLD, o “manager” de ouro da World Circuit, esteve em Portugal no passado dia 6 de Dezembro e falou com as Crónicas da Terra.
Como um dos fundadores da World Circuit, a par de Anne Hunt e Mary Farquharson, gostava de saber o que o motivou para começar a trabalhar com músicos africanos e latino-americanos numa altura em que o mercado era dominado por músicos de origem anglo-saxónica?
Entrei para a a World Circuit porque houve uma iniciativa com uma organização de música comunitária. Nessa altura trabalhava em lojas de discos de jazz. Ampliava a minha colecção de discos. Eram tempos de trabalho mais livre. Vendia discos e trabalhava também em várias escolas. Esperava ser professor de instrução primária e fazia trabalho de voluntariado para a Music Community. Ajudava-os com as “tournées”, a levar música às escolas e eles recomendaram-me que falasse com as pessoas da Arts Worldwide que faziam concertos por todo o Reino Unido. A ideia era levar músicos a localidades onde eram desconhecidos. A única qualificação que estes artistas teriam de ter para fazer parte desta rede era a sua excelência artística. Fazíamos concertos com músicos do Sudão, Venezuela, Índia, de qualquer parte. Depois dos concertos as pessoas muito entusiasticamente perguntavam-nos por discos dos artistas. Mas não haviam discos. Decidimos criar a World Circuit. E a ideia era trazer estes artistas de um circuito local para o circuito mundial. E então encontrei-me com estas senhoras. Elas não tinham experiência de gerir uma editora e precisavam de alguém que o fizesse. Sabiam que eu tinha experiência em organizar concertos, trabalhar em lojas de discos, mas que nunca tinha gerido uma editora. No início tinha de fazer tudo, ajudar na execução das capas de discos, encontrar distribuidores, promover os artistas junto da imprensa. Fazer mesmo de tudo. Até mesmo embalar caixas de discos e enviá-los aos distribuidores. Mas foram momentos fantásticos em que as pessoas começaram pela primeira vez a interessar-se verdadeiramente por este tipo de música. Havia muitas pequenas editoras nesta altura e a maioria delas editava música africana e latino-americana. Gostei muito, apesar de trabalhar muito e ser remunerado de forma simbólica.
Tinha sido estudante de Assuntos Africanos, verdade?
O meu curso versava sobre História Africana. Na área de história, a universidade é dividida em diferentes escolas: a escola de estudos anglo-americanos, estudos das nações africanas e estudos europeus. Frequentei a escola do estudo das nações africanas. Estudei sobretudo a história de África. Mas não sabia o que fazer nessa altura. Trabalhava numa loja de discos e esperava ser professor quando a oportunidade de vir para a World Circuit surgiu. Tinha alguns conhecimentos de África, mas algo limitados porque o que fazíamos na Universidade era estudar teorias do colonialismo e do pós-colonialismo. Não havia o conhecimento de África. Outro dos cursos que fiz foi o de literatura africana e esse deu-me grandes bases. Nesse tempo começava a ouvir-se música africana em Inglaterra. King Sunny Ade assinava contrato com a Island Records. Havia concertos em Londres de Youssou N’Dour. Havia já um grande interesse da minha parte na música africana e no jazz.
Esses foram tempos em que Mory Kante editou o grande hit “Yeke Yeke”. O público em geral parecia mostrar-se interessado pela música africana…
Sim. Exactamente nessa altura. Não fomos a editora que começou a lançar música africana, fomos uma das editoras interessadas nessa área. Mas em Inglaterra, o King Sunny Ade teve mais sucesso do que o Mory Kante que foi um fenómeno sobretudo em França.
A editora do Mory Kante – Barclay – também era francesa. Parece que nesse tempo havia uma distinção na música africana produzida por ingleses e franceses. Agora isso não se nota tanto.
É difícil para mim ver o que se passa noutras editoras. Estou sempre tão consumido com o trabalho na World Circuit. Por vezes sinto-me envergonhado e ignorante quando por vezes me perguntam o que acho sobre o trabalho de determinada editora. Muitas vezes não faço ideia porque estou muito concentrado no trabalho com os nossos artistas.
Parece-me que a edição e o sucesso do Buena Vista Social Club marcaram de forma determinante a política de edições da World Circuit. Parece-me haver um pré e um pós- Buena Vista. Antes, o espectro de artistas era muito maior, as edições aconteciam com muito mais frequência e depois disso passaram a estar mais localizadas no Mali, no Senegal e em Cuba e em menor quantidade.
É interessante e é verdade. Não reparei nisso até editar a compilação dos 20 anos de World Circuit. Nos primeiros anos o espectro era muito mais alargado. O que aconteceu foi natural. Muitos dos músicos com quem fomos trabalhando foram recomendando outros artistas.ALI FARKA TOURÉ recomendou-nos a OUMOU SANGARÉ, o TOUMANI DIABATÉ, a DIMI MINT ABBA da Mauritânia, o AFEL BOCOUM. ALI arranjou-nos quatro artistas e a maioria deles malianos. Quanto mais trabalho com artistas do Mali mais me interesso pela música do Mali. O mesmo aconteceu com o Senegal ao trabalhar com a ORCHESTRA BAOBAB e com o CHEIKH LO. Quanto ao caso cubano… enquanto lá estive durante três semanas encontrei numa mesma sala um lote de artistas incríveis. CACHAITO, GUAJIRO, COMPAY, IBRAHIM, ELIADES…
Deve ter pensado que tinha ali trabalho para uns bons anos.
O que aconteceu foi sentir haver ali muitas possibilidades de discos distintos. Gravámos o Buena Vista mas fiquei triste de não gravar mais com o ELIADES OCHOA. Por exemplo, ao ouvir o disco do RUBEN GONZÁLEZ, posso ouvi-lo para sempre. Tanto IBRAHIM como COMPAY eram músicos muito especiais por quem facilmente nos apaixonávamos. Quando o CACHAITO testava o seu contra-baixo com a secção rítmica, sentia que aquilo era fantástico e que daria um outro projecto distinto. Dali não vi apenas um bom disco, mas uma série de bons e distintos projectos. Mais do que centrarmos atenções numa determinada área geográfica começámos a trabalhar mais com artistas individuais. Comecei a compreender melhor aquela música. E isso leva muito tempo a perceber o que é possível fazer. Quando entras pela primeira vez no Mali ou em Cuba podes pensar que conheces e compreendes a sua música. Mas é muito complexa. Há um grande e distinto lote de estrelas. Quanto mais fundo cavas… Os discos também levam mais tempo a fazer porque agora temos mais dinheiro e por isso podemos experimentar mais. Talvez tenhamos um nível de perfeccionismo acrescido porque quando atingimos um bom nível vamos querer mantê-lo. E os discos começaram a levar mais tempo a serem produzidos. Por exemplo, quando lançámos o último disco da OUMOU SANGARÉ pensámos em como poderíamos diferenciá-lo dos outros três que tínhamos editado antes. No Mali, os textos podem determinar diferenças entre os discos, mas nós não compreendemos os textos escritos no Mali. Mesmo que os expliquemos não é a coisa principal para a audiência ocidental. É a música. Falo por mim que passei muito tempo a ouvir jazz e o que considerava importante era a música, não os textos. Posso ouvir a voz como mais um instrumento. Também não gravamos apenas um disco e avançamos logo para o próximo. Tantamos trabalhar em todas as áreas com todos os artistas. Na capa, nos textos, nas relações com a imprensa e nas digressões. Trabalhamos muito com agentes de espectáculos.
O facto de o Buena Vista Social Club ter vendido milhões de cópias deu-vos outra responsabilidade. É essa responsabilidade e necessidade de manter elevada a qualidade das edições que faz com que todas elas tenham capas muito bem cuidadas, que cada nova edição volte a ser uma edição de luxo.
O Buena Vista mudou a forma de fazermos as coisas, mas talvez antes não o pudéssemos fazer. A ambição sempre se manteve. Parte da ideia era fazer a capa o mais bonito que pudéssemos, que tivesse a indicação que havia algo de especial lá dentro. Os artistas que gravamos não são meros músicos, são artistas incríveis e tentamos fazer-lhes justiça. Já que fazem o trabalho deles tão bem, tentamos dar o nosso melhor para atingir o mesmo nível de qualidade.
É esta busca da máxima qualidade nas vossas edições que faz com que a WC tenha um trabalho mais facilitado ao nível da promoção, já que um artista ao editar um disco pela vossa editora terá mais visibilidade. O TOUMANI DIABATÉ reconhece esse vosso trabalho e diz “graças a deus que estou a trabalhar com a WC porque o meu trabalho é mais reconhecido”. Se formos a ver, quase ninguém sabe que o TOUMANI DIABATÉ gravou um disco há dois ou três anos atrás com o ROSWELL RUDD.
Sim. É uma das razões do nosso sucesso. O TOUMANI pode dizer isso, mas eu terei de dizer com muito mais veemência «obrigado TOUMANI por trabalhares connosco», porque esse sucesso passa sobretudo pela qualidade dos artistas. É um privilégio e uma honra trabalharmos com estes músicos. Nos tempos em que ouvia mais jazz e blues, sonhava em conhecer os grandes músicos de um mundo à parte. Agora estou a trabalhar com músicos desta qualidade. Músicos que têm uma glória reflectida no seu nome. TOUMANI DIABATÉ, ALI FARKA TOURÉ, RUBEN GONZALEZ, IBRAHIM FERRER, OUMOU SANGARÉ são músicos incríveis. É essa a razão do nosso sucesso.
[1ª Parte]
Boa entrevista! Cá fico à espera da 2ª Parte. Curiosamente, esta semana tinha saído outra entrevista (coincidência?), com o Nick Gold no “Expresso”, onde este, entre outras coisas, punha dúvidas relativamente à designação “World Music” o que, vindo de um inglês, é de saudar. De facto, na perspectiva dos “fundadores” do conceito, nada nos garante que o Tony Carreira, não possa, um dia, vir a ser considerado um artista da “World Music”…
Olá Rui, a 2ª parte é bem mais interessante.
Não é coindicência. Quando cá esteve, o homem falou com muitos jornalistas.
Essa abragência da “World music” já ocorre em qualquer discoteca europeia em que tudo o que não seja inglês (Eros Ramazzotti, Gypsy Kings, Alejando Sanz, Enrique Iglesias) é aí colocado. E quantos artistas é que já passaram pelo Womex, ou quantos discos é que já nos ouvimos de ciganos romenos, hungaros, etc de um gosto muito divudoso? Cabe-nos conseguirmos fazer o esforço do que mercece ser escutado e ser dado a conhecer.
abraço
lr
Que algumas discotecas europeias “arrumem” tudo o que não seja anglo-saxónico, nos escaparates de “World Music” é mau, mas revela falta de cultura musical. Que os “fundadores” do conceito (ver actas de 1987 na “FRoots”) o tenham feito a partir de uma visão etno-centrica do Mundo é mais grave. Como o Nick Gold não estava lá, está desculpado…
O problema não reside no facto dos grupos ciganos romenos serem de gosto duvidoso, ou não; o problema reside no facto dos grupos europeus serem arrumados na prateleira da denominada “World Music”. O facto de qualquer música da Roménia poder ser apelidada de “World Music”, isso é que está errado.