Há quatro anos atrás, Amparo Sánchez deu, no Palco da Cerca, um dos últimos espectáculos do seu projecto Amparanoia. Festiva como sempre, mas mais tensa do que o registo que lhe presenciámos no Rock in Rio, dois anos antes, o seu espectáculo, a sua atitude em palco, era o pronúncio do fim de um ciclo, da necessidade de mudança, de uma busca interior. Amparo fez uma travessia no deserto (do Arizona) e em boa hora se libertou do epíteto Manu Chao de saias.
Regressou muito mais calma, madura, com uma enorme força tranquila e uma postura de diva da música latina. Canta agora com muito mais alma e classe. E isso é visível nos primeiros acordes de cartão de visita “Aquí Estoy”, tema que abre o álbum “Tucson-Habana” gravado entre a aridez do deserto californiano e o calor (e o apagão iluminado) de Havana. Ao escutar repetidamente, desenfreadamente, as catorze grandes canções do disco com uma energia muito própria questionava-me sobre como seria um espectáculo com toda esta suavidade, em câmara lenta, num recinto ao ar livre. Um mês antes, o Womad de Cáceres havia-lhe dado a possibilidade de actuar em plena Plaza Mayor (para 30 ou 40 mil almas) na fase perfeita do dia: durante o crepúsculo verspertino. Foi pena que, contrariamente ao que estava inicialmente planeado (21h), o espectáculo de Amparo Sánchez tivesse passado para as 21h45. Mas a já noite cerrada não retirou qualquer beleza à música desta mulher que ao deixar crescer o cabelo, ao deixar de lado uma certa rebeldia, está mais senhora, mais bonita. Em Loulé, muitos consideraram-na morna (a música dela, tal como a de Lhasa, é assim, para ser consumida em lume brando, à média luz), outros lamentaram o facto de ela não pegar em canções de Amparanoia (e ainda bem, porque a fase agora é outra), mas a forma como interpretou enormes e introspectivas baladas latinas com sabor a ranchera mexicana, a trova cubana e a arranjos típicos de uma banda sonora de Ry Cooder, como “La Parrandita de Las Santas” (sem a presença de Omara Portuondo) foi igual ou superior à versão do disco, como o final mexido de son cubano de “Apagón en la Habana” serviu para apresentar os músicos e exercitar o improviso, o “free style” que desenvolveu naquela casa de Barcelona que albergou Macaco e Manu Chao no mesmo tecto, como soube bem dançar um reggae (também ele algo lento, é certo) de “Quisera, Pero”, fez com que Amparo Sánchez passasse novamente pela Cerca com elevada distinção. Ry Cooder bem que poderia produzir um novo disco de Buena Vista Social Club com a (já) diva Amparo como convidada.
A noite prosseguiu com outro tipo de estímulos e de energia. Da mineral de Amparo à nuclear de Femi Kuti vai o tempo que demora a saborear o espectáculo da espanhola e atravessar a zona antiga de Loulé, da Cerca à Matriz. Mas o nigeriano apareceu algo fora de forma, com demasiado repertório antigo (apesar de ter novo disco) e com imensos problemas de som, sobretudo na primeira meia-hora. O sax e as vozes femininas mal se escutavam, já o teclado estava altíssimo. O seu manifesto afrobeat continua explosivo, de língua muito afiada dirigida aos “vagabundos no poder” (os direitos de autor desta expressão pertencem a Nneka), a secção de metais poderosíssima, mas o demónio à solta do espírito de Fela que vimos há uns anos no FMM já não é o mesmo. Esse, está agora encarnado no irmão Seun.
Bem melhor, mas ainda assim não tão bom quanto o concerto de Amparo, o outro ilustre descendente (agora de Ali Farka Touré) ligou-nos à corrente eléctrica durante quase duas horas. Não é novidade para ninguém que Vieux Farka Touré herdou do pai o gene de virtuoso guitarrista. Mas este, contrariamente à maioria dos músicos africanos que se apresentam em palco com indumentária tradicional, veste-se como um ocidental e toca guitarra como um Hendrix ou um Jimmy Page. De solo em solo, faz-se acompanhar por alguns bons músicos malianos tradicionais, mas a peça-chave da sua formação é um fabuloso baterista de pele branca. Um miúdo norte-americano que imprime elevado ritmo circular de transe (Tim Keiper). Tudo em Vieux é intensidade, electricidade. Trilha um caminho que deixa cair por terra qualquer comparação que se tente fazer entre ele e Monsieur Le Maire de Niafunké. Mas há, por estes dias, excesso de tensão e uma certa falta de relaxamento. Acredito que, com o passar dos anos, este maliano irá saber dosear as contínuas descargas eléctricas. Se possuísse uma máquina do tempo teria imensa curiosidade em escutar que rock, blues e reggae africano fará em 2020 Vieux Farka Touré.
No Castelo, o tempo foi muito curto para escutar o açoriano Zeca Medeiros (só cinco minutos) que se apresentou em versão portátil de trio, sem o violinista Manuel Rocha (ok, já o vi em duo) e sem qualquer voz feminina (que saudades de Mariana Abrunheiro), de quem se espera novo disco lá para o final do verão.
Por este palco também passaram os Macacos do Chinês (entre a hora de Femi e de Vieux). Aos competentes e enérgicos MCs há quase sempre uma guitarra portuguesa omnipresente que casa muito bem com o hip hop de quem rola na Reboleira. Neste espaço, deu para constatar que o público do Med é muito diferente de palco para palco (a assistência de Vieux é claramente mais velha e com mais estrangeiros) e que muitas das bandas que actuam no Castelo têm uma enorme capacidade de arrastar consigo os fãs do sul do país que conhecem de trás para a frente o repertório dos Macacos do Chinês. E isso é muito bom.
(c) Fotos: Arquivo C.M. Loulé