Entrevistas

Zé Rui Martins: “A cidade é recrutada no campo”

 

No ano em que a ACERT de Tondela celebra 35 anos de existência, realiza-se entre os dias 13 e 16 de Julho a 21ª edição do festival multicultural Tom de Festa, mais uma vez com um cartaz extremamente apelativo onde pontificam o sueco Ale Möller, o maliano Vieux Farka Touré ou a argentina (e nova-iorquina) Sofía Rei.

José Rui Martins, actor, músico, director artístico da ACERT e do Tom de Festa explica como se cultiva o interesse pelas artes e se apura o gosto no interior do país.

 

Como é que uma associação cultural como a ACERT consegue sobreviver 35 anos no centro e interior do país, fora dos grandes centros urbanos?

Sonhando utopicamente com a capacidade imaginativa para se ser feliz no sítio onde se vive. Acreditando que a “interioridade” é mais um preconceito mental do que uma contrariedade. Lembramos que, desde 1976, são centenas de criadores nacionais e internacionais [teatro, música, artes plásticas, cinema…] que escolheram Tondela e a ACERT para realizarem residências artísticas, fazer estreias e trabalhar em parceria na montagem dos seus espectáculos.

Existem realmente vantagens da interioridade na produção artística: construir uma cenografia demora menos de metade do tempo do que num grande centro. Gravar um disco no nosso estúdio rende mais do que numa grande cidade. Acorda-se e, passado uma hora, está a trabalhar-se sem stress nem duas horas de transportes públicos. A carpintaria, a serralharia e a costureira ficam a 500 metros da ACERT. Eles sabem quanto agradável é encontrar soluções imaginativas para o que se pretende. Come-se bem, descansa-se melhor, inventa-se mais tranquilamente e com tempo para desfrutar amizades e cumplicidades.

Mas efectivamente, é importante sublinhá-lo, é ao público que cabe o papel preponderante da fixação de artistas e duma actividade cultural e artística em Tondela neste trilho de 35 anos. Também aos parceiros de toda a parte que sentem que a ACERT é também a sua casa e que podem ser felizes connosco nela. E, naturalmente, à população que na relação comunitária que mantemos como matriz do projecto, nos passa sinais e afectos da indispensabilidade da cultura para gerar processos de desenvolvimento globais e identitários. Não é por acaso que tanto nos identificamos com um pensamento de Mia Couto: “O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora.”

– A ACERT encontra-se no meio de um eixo formador por excelência de um público interessado e exigente que começa em Águeda e termina na Guarda. Que relação têm com estes municípios e agentes culturais? Tem havido sinergias entre vocês na criação de projectos incubados nestas associações / teatros municipais como A Cor da Língua, Cantos de Língua, Toques do Caramulo, Presença das Formigas, Assobio, etc?

Nem sei o que é de quem. Sinto-me totalmente identificado com qualquer destes projectos e não vejo nenhuma fronteira a separá-los, para além da identidade que caracteriza cada um deles. Os músicos circulam entre eles. A essência de intervenção criativa é um ele que os percorre commumente.

Acho que, no entanto, circunscrever ou fazer terminar na Guarda este eixo cúmplice, é redutor. Pegadas do mundo e de criadores nómadas de muitas paragens são fundamentais no nosso crescimento, enquanto artistas e cidadãos comprometidos com uma cidadania interventiva multicultural.

– O Tom de Festa também já tem mais de 20 anos. Nas últimas edições tem conseguido apresentar nomes bastante apelativos de África, como Habib Koité, Bassekou Kouyaté, Dobet Gnahoré e, este ano, Vieux Farka Touré. Mais uma vez, qual é o segredo de um festival com certas limitações geográficas e de espaço apresentar sempre cartazes acima da média?

Actuando com uma dimensão mental do tamanho de Lisboa ou Paris e mantendo os pés e as raízes num local que tem que ser universal para transmitir um sentimento profundo de Saramago: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”
Desculpem as citações, mas elas são uma prova do que aprendemos e de como, cada vez mais, temos a percepção de que não estamos sozinhos a reflectir sobre o que nos cabe fazer a cada momento para que a arte tenha uma função de memória e modernidade.

Quando falas em todos estes nomes, é importante reter que mais de 500 músicos nacionais e internacionais povoaram com o seu talento. Compay Segundo tocou como músico anónimo dois anos antes de se ter tornado “famoso mundialmente” com “Buena Vista Social Clube”. O público pediu cinco ancores a um talentoso “desconhecido” do circuito comercial. Thomas Chapin, Manu Dibango e Milton Nascimento criaram espectáculos únicos para se apresentarem nesta cidade do interior. Cumplicidades múltiplas e não elevados cachets fazem do nosso Festival, um acontecimento de referência no panorama musical nacional. São mais de três dezenas de pequenas empresas locais e nenhuma grande marca nacional que tornam possível o Tom de Festa. Doam pão, vinho, madeira, serviços tipográficos…

E, claro, a autarquia tondelense que reconhece a jóia que acontece na sua cidade e os milhares de habitantes dos grandes centros que visitam Tondela durante todo o ano atraídos pela oferta cultural.

– Nos últimos anos, o Tom de Festa sempre se caracterizou por cartazes eclécticos que abrangem música tradicional africana, europeia e americana, mas também jazz e expressões mais populares como pop, rock, hip hop, rap, reggae. Isso acontece porque o vosso público também é muito diversificado?

Também é. Mas representa sobretudo um desejo em revelar projectos musicais que não pertencendo às preferências do público, passem a constituir suas predilecções a partir do momento em que actuam. A música é pluralidade de sonoridades. Mais do que o rótulo, interessa o conteúdo. Mais do que o chamariz comercial, importa valorizar a alternativa de criação de públicos baseada em critérios de reconhecimento de autenticidade e não do consumismo do “Maria-vai-com-as-outras”.

– Há dois anos houve uma extensão do Tom de Festa em Lisboa. O que é necessário para que isso volte a acontecer na capital, ou em outra localidade do país, que gostaria de ver ao vivo muitos destes projectos que apenas actuam em Tondela?

Sentir que é colectivamente que a equipa da ACERT e os seus associados evoluem na relação com os outros e não provincializar encantamentos. Desculpa, uma vez mais de transmitir esse sentido de parceria com o pensamento do filósofo/poeta americano, Ralph Emerson: “A cidade é recrutada no campo”.

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