Sete anos após ter-se estreado em palcos portugueses, no Med de Loulé, o italiano Vinicio Capossela regressa ao nosso país com o mesmo repertório, agora registado no álbum “Rebetiko Gymnastas”, acompanhado do virtuoso tocador de bouzouki, o grego Manolis Pappos.
Nos dias 11 (Teatro Tivoli em Lisboa) e 12 de Junho (Theatro Circo em Braga), Capossela mostra todo o seu amor pela rebeldia grega registado, não apenas neste disco, mas igualmente no documentário “Indebito” (onde é protagonista) que apresentou recentemente na Festa do Cinema Italiano em Lisboa e no caderno de apontamentos desta viagem helénica transformada em livro – “Tefteri – il libro dei conti in sospenso” (que esteve na origem desse documentário realizado por Andrea Serge).
Neste espectáculo, Capossela apresenta alguns dos seus temas de sempre, hinos anárquicos e outras canções de sempre (mais ou menos obscuras) italianas, como a bluesy “Quello Che No No” de Fabrizio de André. Sempre com arranjos de rebetiko.
Segue-se a conversa que registámos durante a Festa do Cinema Italiano em Lisboa.
– “Rebetiko Gymnastas” é um título que emana uma entrega a um desporto. Para ti, o rebetiko é uma actividade física que te permite aprimorares-te enquanto músico?
– Chama-se “Rebetiko Gymnastas” porque não é um disco de rebetiko. É um disco de exercícios de rebetiko e o rebetiko é uma disciplina para manter em forma o rebelde, o “mangas”, aquele que se opõe à homologação cultural. É um exercício de resistência cultural e existencial. “Gymnasta” deriva da palavra grega “gymnos” que significa nu. Tal como o exercício, o rebetiko é uma música que nos põe a nu.
– É uma actividade que implica exercício e disciplina. É para melhorares as tuas capacidades de músico? De performer?
– Para melhorar-me enquanto homem. Para ser menos obediente. É um exercício para manter vivo o homem. Claro que é também um exercício musical, naturalmente.
– Este é um disco que já gravaste há uns anos atrás…
– sim, em 2007.
– Nesse ano, tinhas acabado de chegar ao Med de Loulé vindo de Atenas onde havias estado a gravar este disco e aí apresentaste parte do repertório deste disco. Porque é que “Rebetiko Gymnastas” demorou mais de cinco anos a ser editado?
– Registei este disco para que fosse editado inicialmente na Grécia. Não era importante editá-lo em Itália. Houve um problema com a editora grega que não o editou. Entretanto gravei outro disco – “Marinai, Profeti e Balene” e então acabámos por editar ambos os discos em Itália em 2012.
– “Rebetiko Gymnastas” é um disco de música de portos, “Marinai, Profeti e Balene” é um disco de mar. Há uma certa relação entre eles…
– Sim, mas “Rebetiko Gymnastas” não é um disco de rebetiko, apesar de aí interpretar diversas músicas de portos. A morna… colocámos uma guitarra portuguesa do Ricardo Parreira… Gosto de música de taberna. Musicalmente não estão muito relacionados. “Marinai, Profeti e Balene” não é tanto sobre o mar, é mais sobre o destino onde há uma literatura épica de mar que põe a aventura humana em confronto com o destino: “Moby Dick”, “Odisseia”. O mar é sempre o logro, a prova do destino. Porque é nunca o conhecemos verdadeiramente.
– Em “Rebetiko Gymnastas” regravaste oito temas que já tinhas publicado em discos anteriores com arranjos de música rebetiko. Como é que te passaram a soar estas músicas gravadas com estes novos arranjos?
– Fi-lo porque a ideia inicial deste disco era publicar estas músicas na Grécia tocadas com músicos gregos. Depois, porque comecei a fazer estes exercícios musicais com as minhas peças a mudar o tempo delas. “Con Una Rosa” tocado em ellinikó baion, ou “Scivola Vai Via” em zeibékiko. A música grega é muito rica, é uma zona de encontro entre o Ocidente e o Oriente, tem um património musical extraordinário: a música de Creta muito ancestral, bandas balcânicas como a Florina Brass Band, toda a tradição de Ásia Menor, que vem do Oriente (taqsim, café aman). Em qualquer peça que toque com estes músicos gregos, há uma grande riqueza da “esfumatura”. Se voltasse a gravar este disco, não registava os meus temas em rebetiko. Andei em digressão com o Manolis Pappos durante um ano e nessa altura recuperámos canções anárquicas italianas, peças de resistência como o espírito do rebetiko. É o resultado de uma viagem onde participei no documentário “Indebito” e em que escrevi o livro “Tefteri – Il libro dei conti in sospenso”.
– O que é que o rebetiko tem de tão importante para ti para teres gravado este disco e rodado este documentário “Indébito” que aborda esta música?
– É uma música que me toca muito. É uma música de verdade, de coração. É um símbolo de resistência cultural e económica. Quando penso na Grécia, não penso apenas nos tempos actuais. Penso na Grécia enquanto berço da civilização que criou o homem universal.
– Neste disco, “Rebetiko Gymnastas”, gravaste uma versão de “Misirlou”, uma das composições gregas do final dos anos 20 que muita gente associa a surf-rock californiano (devido ao facto da versão de Dick Dale ter feito parte da banda sonora de “Pulp Fiction”). Quiseste mostrar ao mundo cinéfilo a verdadeira origem de “Misirlou”?
– Não apenas cinéfilo. “Misirlou” era uma canção dos anos 30 de rebetiko que significa “miúda das arábias”. Foi um bom motivo para cantar em conjunto com essa cantora extraordinária que é Kaiti Ntali.
– “Rebetiko Gymnastas” é também um disco que convoca a música latino-americana de Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa e Chavela Vargas para o universo do rebetiko. O que une estes “mundos”?
– É mais um exercício de ginástica unir estes autores da América do Sul, o tango, o fado, a morna. Músicas que evocam “saudade”.
– Também te interessas por fado. Tens visitado várias casas em Lisboa e, neste disco, contas com a participação de Ricardo Parreira em guitarra portuguesa. Músico que, aliás, já tocou contigo quando atuaste anteriormente em Lisboa (na Culturgest). Pensas que o fado poderá ser para ti um objecto de exercício de ginástica musical?
– Creio que não farei um exercício de fado porque é necessário dedicar-lhe toda uma vida. Tem ritualidade, história, é um parente espiritual de músicas que me tocam muito como o rebetiko e o tango. Mas numa casa de fado prefiro ouvir, sentir o ambiente, a fazer exercícios de fado.
– Falando ainda na guitarra portuguesa do Ricardo Parreira que gravaste neste disco, será que este instrumento tem uma sonoridade semelhante a um bouzouki com o qual se toca rebetiko?
– A guitarra portuguesa é um instrumento que exprime muito a cultura do povo que a criou. É distinta do bouzouki. Com ela, um músico pode solar, deixar a sua marca, num registo mais ligeiro. O bouzouki é mais violento, próprio de um instrumento que vem do Oriente. A palavra “bouzouki” é proveniente da turca “bozuk” que significa erro, imperfeição. É um instrumento que transporta essa carga negativa. São dois modos de entender e interpretar os sentimentos dos povos, embora com dois timbres, duas linguagens muito diversas.