Kayhan Kalhor, iraniano de sangue curdo e, sobretudo, cidadão do mundo, é um dos principais embaixadores da música clássica persa assente na improvisação e um dos mais virtuosos tocadores de kamancha. Instrumento de cordas friccionadas com arco que, ao ter sido transportado para o mundo ocidental, esteve na origem da rabeca e, consequentemente, da viola de gamba, do violoncelo e do violino.
Kayhan Kalhor desdobra-se em múltiplos projectos, ora em formato de duo (com Erdal Erzican, ou sob a designação de Ghazal Ensemble com Shujaat Husain Khan), ora em ensembles persas (Dastan, Masters of Persian Music), ora em orquestras ocidentais como a Silk Road Ensemble do violoncelista norte-americano de ascendência chinesa Yo-Yo Ma.
É com novamente com o turco Erdal Erzican (baglama) com quem dividiu o palco da extensão de Porto Covo da 16º edição do FMM de Sines (em Julho de 2014), que o iraniano regressa a Portugal, no próximo dia 2 de Fevereiro para actuar no ciclo de músicas do mundo da Gulbenkian. O duo cruza a música clássica da Pérsia e de Anatólia, tendo por base a exímia capacidade de improvisação de ambos os executantes.
As Crónicas da Terra conversou via telefone, em Julho de 2014, com o iraniano, pouco tempo antes de actuar com Erdal Erzican no Festival des Suds em Árles (França).
– O último álbum que gravou com Erdal Erzican tem um título curioso: “Kula Kulluk Yakişir Mi” [ed. ECM, dist. Distrijazz] que significa “é impróprio servir alguém servilmente”. É um manifesto político, quer para o Irão, quer para o Ocidente?
É um título de uma canção de um músico turco e tocador de baglama, Muhlis Akarsu. É sobretudo uma metáfora de liberdade, da capacidade de improviso e de entendimento que existe quando os músicos se relacionam.
– É por causa dessa maior capacidade de improviso que toca muitas vezes em duo?
Sim. Quando toco com outro músico e existe um enorme entrosamento e conhecimento das capacidades técnicas um do outro e uma sensibilidade para o improviso, é possível desenvolver um projecto desta natureza. Uma orquestra não nos dá esse enorme campo aberto ao improviso. Também gosto de combinar culturas, geografias.
Penso que a música é basicamente a mesma em toda a parte. Expressamo-nos em diferentes línguas de acordo com a nossa localização geográfica, de acordo com as nossas experiências e temperamento.
Claro que quem nasceu persa é diferente de quem nasceu no Mali, com essa cultura, com essa história.
Diferentes elementos geográficos dão-te uma outra visão. Nós gostamos de um certo tipo de som, de uma escala e uma certa forma de o expressar. É isto que me atrai para outras culturas musicais. É por isso que faço estes projectos a dois, de partilha com outros músicos. Especialmente aqueles onde a improvisação é muito importante e temos uma diferente forma de o fazer.
– Até que ponto o rigor e a prática contínua do instrumento são importantes para o seu desenvolvimento enquanto músico? Recordo-me de, há treze anos atrás, no Festival Cantigas do Maio onde actuou com o Ghazal Ensemble, o seu parceiro indiano da sitar, Shujaat Husain Khan, referir que acordava regularmente às 3h da manhã para praticar…
Penso que é importante. Qualquer músico tem de fazer isso. Há períodos em que tens de te pressionar a ti próprio e tocar muito. Houve períodos da minha vida em que tocava 18 horas por dia. Toda a gente lá em casa já estava cansada de mim. Tocava muito e punha-os infelizes.
– Começou a tocar violino com 7 anos de idade e só depois optou pelo kamancha. Não foi difícil a mudança?
A mudança de violino para o kamancha não foi problemática porque tocava violino no estilo persa e por isso estava familiarizado com as escalas.
Não tens de te esforçar tanto se nasces no seio de uma cultura e tentas reproduzir a música dessa cultura. Ela está sempre nos teus ouvidos, na rádio, nas casas que frequentas. O que soa a diferente para ti é muito familiar para nós. A música artística do Ocidente torna as suas escalas reconhecíveis aos ouvintes de todo o mundo. Mas a nossa música (Persa), a música indiana, a música que pertence a uma só cultura, não é muito conhecida no resto do mundo e soa muito exótica. Mas a nós, não nos soa muito exótica porque é isso que ouvimos diariamente, é a nossa música e são as nossas escalas. Claro que há muitas partes na nossa música, como as semínimas, que a fazem soar diferente, mas no essencial, ambas as músicas (ocidental e persa), têm uma escala de sete notas, não são muito diferentes, mas soam um pouco diferente.
– Falando acerca do kamacha, nas pinturas do sec. XVII vejo uma mulher a tocar este instrumento. Penso que, nos dias de hoje, os principais instrumentistas de kamancha são todos homens. Para além de si, Ali-Asghar Bahari (que já faleceu), Ardeshir Kamkar, Saeed Farajpouri . Porquê?
Não necessariamente. Há muitas mulheres a tocar também. Mas no período entre os anos 70 e início dos anos 80 a maioria dos tocadores eram homens. Hoje em dia é diferente. Há um grande dinamismo na música persa. Há muitas raparigas novas a aprender e tocar todo o tempo o kamancha, a tar e outros instrumentos. Não penso que a sua observação seja verdadeira. Talvez os mestres que referiu sejam todos homens e isso seja apenas um acidente.
– Conhece Jordi Savall?
Sim, claro. Tenho muito respeito por ele enquanto artista. Existe a possibilidade de trabalharmos em conjunto proximamente.
– Que relação pode fazer entre o kamancha e a viola de gamba?
Claro que estes instrumentos se relacionam entre si. O kamancha e os instrumentos da família dos “spike fiddles” nasceram na Ásia Central e viajaram para Oeste, para a Pérsia. Viajaram ainda mais para Oeste dando origem ao rebab e à rabeca. A viola de gamba é o elemento mais novo da família e é de uma dimensão maior.
– Ao longo do seu trabalho, Jordi Savall e a sua Hespèrion XXI têm interpretado peças Persas, sobretudo em álbuns como “Orient – Occident” (I e II), ou “Esprit D’Armenie”. Com que olhos vê um músico europeu tocando estas músicas da sua cultura?
Ele toca música medieval e pré-medieval. Nesse tempo, a nossa música era muito similar. As nossas músicas começam a distanciar-se no final do período renascentista e barroco, devido ao temperamento dos instrumentos para que as orquestras, os ensembles [puropeus], soassem uníssono. Nós [persas] não tínhamos essa necessidade, por isso não efectuámos essa mudança. Se olhar para o mapa da antiguidade, havia dois grandes impérios: o Persa e o Grego (ou Romano). Por causa disso, tivemos uma longa relação social: guerras, trocas comerciais, casamentos. Aprendemos muito uns com os outros, partilhámos sabedoria. Basicamente, a música grega ancestral e a música persa tinha uma sonoridade semelhante. E, como sabe, a cultura grega ancestral é a base da cultura ocidental.
Quando o Jordi Savall revisita a música turca, ou a música persa, procura essas semelhanças desses tempos antigos. Ele está muito certo. Depois disso, a música começou a mudar muito no Ocidente. Mas as raízes são as mesmas.
– Actualmente, toca em duo com Erdal Erzican, em orquestra com a Silk Road Ensemble do violoncelista norte-americano (de sangue chinês) Yo-Yo Ma. Tem outros projectos em mente?
Gosto de tocar em dueto com um alaudista e estudar música árabe. Faço-o há vários anos. Estou à procura de um músico que seja um desafio para mim, com quem me possa relacionar através da sua música e da sua personalidade. Isso é outra coisa que gostava de fazer.
Já que falou de Jordi Savall, gosto muito da música dele. Temos falado em fazer qualquer coisa juntos. Quem sabe, poderá ser o próximo projecto. Claro que há outros projectos que gostaria de desenvolver mas vivemos num ciclo de tempo limitado.
– Recentemente gravou um outro disco – “I Will Not Stand Alone” – em que usou um novo instrumento: shah khaman. Pode abordar as diferenças entre este instrumento e o kamancha?
Shah khaman é uma invenção de Peter Biffin. Ele é australiano, conhecêmo-nos na Alemanha. A versão original desse instrumento é um tarhu. Pedi-lhe para fazer um kamancha usando a mesma técnica. Passado uns anos, pedi-lhe para fazer outra versão de kamancha com 5 cordas principais e mais sete de ressonância. Dá-me uma forma diferente para me exprimir com notas mais baixas, um som diferente. Basicamente, é um kamancha de diferentes dimensões, com cinco cordas.