[recordar JOSÉ AFONSO pela voz de uma excelsa mulher maiorquina, através de entrevista efectuada em 1998, dias antes de a cantora catalã participar no Festival Cantigas do Maio do Seixal. Artigo publicado originalmente no Semanário O Independente]
MARIA DEL MAR BONET poderia ser a personagem principal de uma história infantil escrita por Sophia de Mello Breyner Andersen. Apesar de carregar consigo meio século de existência, a sua voz e o seu rosto mantêm a beleza e candura das inocentes sereias que povoam os nossos sonhos de criança.
Com 30 anos de carreira e mais de 20 discos editados, há-de continuar a ser jovem enquanto cantar. A cantora Catalã revela-nos que “uma das coisas mais importantes na vida é fazer um trabalho que me dá gozo e isso rejuvenesce-me”. Tirem então da ideia as possíveis práticas orientais de domínio do corpo e da mente, ou de alimentação natural. Tal jovialidade parece ser uma característica de quem nasceu cercado pelo mar, pois “a minha mãe também sempre aparentou ser mais nova.”
MARIA DEL MAR BONET nasceu predestinada a fazer aquilo que realmente lhe dá gozo. Filha de um escritor maiorquino conceituado e de uma investigadora catalã de culturas mediterrânicas, cedo se interessou pela língua, literatura, lendas, música, dança, artesanato e pintura da sua região.
Como ela própria refere, “um artista pode fazer muitas coisas. Quando era mais nova queria ser ceramista. Estudei em Artes e Ofícios e trabalhei como pintora durante muitos anos (aliás, não cheguei a deixá-la nunca por completo). Ainda hoje, para onde quer que vá, levo sempre os pincéis e as telas”.
O canto, a cerâmica e a pintura levaram-na desde cedo a sair de Maiorca para se estabelecer na Catalunha, região que é para Bonet “a segunda pátria”. “Maiorca é um local demasiado pequeno. É difícil ainda hoje ter por exemplo classes de canto. Foi por isso que me mudei para a Catalunha, tendo sido uma região muito importante para mim, nos meus primeiros anos de aprendizagem de canto. Recordo, apesar disso, frequentemente, Maiorca quando esta era ainda uma ilha de uma pureza invejável e inexplorada pela indústria turística.”
Vive na Catalunha, mas Maiorca e o Mediterrâneo são para Maria del Mar Bonet as suas grandes fontes de vida e de inspiração artística. “Não me sinto filha somente de Maiorca, mas de todo o Mediterrâneo. Temos raízes comuns com o Norte de África, Itália, Turquia e Grécia.” Defende a consciência mediterrânica, ao afirmar que “não podemos prescindir do passado se queremos conhecer bem o presente”. Para si, os caminhos culturais de todos estes povos são comuns e têm mais de quatro mil anos. Remontam à época em que se estabeleceram as primeiras vias de comunicação. Essas antigas relações, que hoje ignoramos, são ainda visíveis na música, na literatura, na cozinha e na paisagem. Os povos mediterrânicos “partilham a luz, o mar, o vinho e o azeite”.
A música de MARIA DEL MAR BONET, acaba por ser fruto das melodias maiorquinas que se encontram impregnadas do calor e do sal de toda a bacia do mediterrâneo. Ao escutarmos um disco desta cantora Catalã, temos a sensação de embarcar numa viagem de ida e volta. Afinal “toda a música popular das ilhas tem influências da música da Andaluzia, de Itália, da Grécia e de todo o mediterrâneo. A nossa cultura não é nada sem as demais”. Daí que não seja de todo estranho que ao longo da sua actividade artística, MARIA DEL MAR BONET tenha desenvolvido colaborações com o francês ALAN STIVELL, com o grego MIKIS THEODORAKIS, ou com a ORQUESTRA DE MÚSICA TRADICIONAL DE TUNIS (Tunísia).
Apesar desta visão mediterrânica, MARIA DEL MAR BONET sempre cantou na sua língua nativa, o Catalão de Maiorca. Tal facto trouxe-lhe alguns dissabores no tempo do franquismo. “O meu trabalho sofreu a mesma censura que trabalhos de outros cantores catalães. Durante o franquismo era proibido cantar em Catalão, mas nos últimos anos as coisas começaram a ficar menos hostis”. Houve quem afirmasse que a cantora maiorquina esteve encarcerada duas vezes, somente por cantar em Catalão. Mas ela tem outra versão: “Estive detida não porque cantava em Catalão, mas porque possuía em minha casa arquivos de imprensa clandestinos. É muito diferente.”
Nem só o franquismo se opôs à forma como MARIA DEL MAR BONET se expressava e expressa na sua língua. Também as editoras desde cedo tentaram convencê-la a cantar em línguas comercialmente mais atractivas. “As editoras pretendem ganhar muito dinheiro”, comenta BONET. “Podem tentar convencer-nos a cantar em Castelhano ou em Inglês, mas isso não é negativo. Sempre agradeci à editora que me tentou convencer a cantar em Castelhano, mas tenho as minhas ideias e continuo a cantar na minha língua. Agradeci-lhes a confiança que depositaram em mim ao acreditarem na minha capacidade de cantar em idiomas mais públicos. De qualquer forma, tenho a minha língua e a minha maneira de ser e isso nunca constituíu obstáculo à gravação de discos. Nestes últimos anos fiz mesmo aquilo que queria.”
MARIA DEL MAR BONET é a figura que encerra o Festival Cantigas de Maio do Seixal, evento dedicado à vida e obra de JOSÉ AFONSO. Recorda-se vagamente da época em que conheceu o autor de “Grândola Vila Morena”. Foi “num recital em Valência que se chamava ‘De Los Pueblos Ibéricos’, há muitos anos.” Embora nunca tenha cantado com ZECA AFONSO, a sua carreira continuará a ser uma referência para BONET. “Possuo todos os discos do Zeca. Conheço bem a sua família e dediquei-lhe uma canção.”
Nunca cantaram juntos, mas sempre tiveram algo em comum – a vontade de poderem expressar aquilo que lhes ia na alma, de uma forma que incomodou os regimes salazarista e franquista de então. Contudo, BONET considera que “o importante é a obra que cada um faz, independentemente da sua visão política. Uma visão política é uma visão algo fragmentada de uma só coisa. Um artista tem muitas facetas. Exibe a beleza da poesia, da música, das raízes culturais e sociais. José Afonso fê-lo com Portugal e eu com Maiorca e com aquilo que o Mediterrâneo significa para mim. Creio que isso é uma visão mais completa, do que a simples referência à faceta do artista que combateu o regime fascista.”